Texto de Camila Fresca para a Revista CONCERTO de maio de 2012
No filme Milk, de 2008, o ator Sean Penn vive o político ativista gay Harvey Milk (1930-78). Fanático por ópera, Milk vai à Ópera de São Francisco na véspera de ser assassinado assistir a Tosca e reconhece uma estrela do universo lírico na plateia. Bidu Sayão, que na década de 1970 já havia deixado os palcos, conferia a montagem a seu lado. Naquela madrugada, falando ao telefone com um amigo, Milk conta, entusiasmado: “Ontem vi Bidu Sayão!”. Tal destaque, num filme que nada tem a ver com o universo lírico e rodado tantos anos após Bidu sair de cena, não é mera casualidade.
Bidu Sayão nasceu Balduína de Oliveira Sayão no dia 11 de maio de 1902, no Rio de Janeiro, e teve de superar a oposição de sua família para dar os passos iniciais na carreira. Foi no Rio que ela teve as primeiras aulas de canto, com a soprano ítalo-romena Elena Theodorini. Já aos 18 anos, estreava no Teatro Municipal carioca em Lucia de Lammermoor, de Gaetano Donizetti, mas, apesar da boa acolhida de público e crítica, a jovem Bidu preferiu postergar o início da carreira para prosseguir os estudos. Assim, foi com Elena Theodorini para a Romênia, continuando a se aprimorar, e mais tarde seguiu para Nice, na França, com o intuito de estudar com Jean de Reszke, lendário tenor polonês que a ajudou a consolidar sua técnica vocal. Reszke encorajou Bidu a desenvolver carreira tanto na área da ópera quanto na da canção, além de lhe transmitir sua sólida bagagem sobre a tradição do canto do século XIX.
Em 1926, passando férias em Roma, Bidu compareceu a uma audição e acabou selecionada para interpretar o papel de Rosina em uma montagem de O barbeiro de Sevilha no Teatro Costanzi, dando assim início oficial a sua carreira. O sucesso a levou a cantar nas principais casas de ópera da Europa, incluindo os teatros San Carlo de Nápoles e o Scala de Milão. Nessa época, ela se concentrou em papeis de soprano coloratura, como Amina, de La sonnambula, e Norina, de Don Pasquale. Nesse mesmo ano de 1926, além de realizar uma turnê pela Europa organizada por seu empresário e primeiro marido, Walter Mocchi, Bidu retornou ao Rio e foi aclamada como Rosina.
Em 1935, depois de uma temporada em Buenos Aires cantando ao lado de ninguém menos que Beniamino Gigli, Bidu Sayão faz sua estreia em palcos norte-americanos: sob regência de Arturo Toscanini ela atua na ópera La damoiselle élue, de Debussy, no Carnegie Hall. Dois anos depois, seria a vez de debutar no Metropolitan Opera, em Nova York, no papel-título da ópera Manon, de Massenet. Começava então o capítulo mais brilhante da carreira de Bidu Sayão, que cantou no MET durante 16 anos, atuando em mais de 150 récitas. Ao mesmo tempo, cantou em turnês por outras grandes cidades norte-americanas, como Chicago e São Francisco. Seu sucesso era tamanho que, em 1938, ela se apresentou para o casal Roosevelt na Casa Branca. E nessa mesma época, segundo o musicólogo Vasco Mariz, classificou-se em segundo lugar num concurso que procurou eleger o cantor erudito mais popular dos Estados Unidos. Arturo Toscanini, seu admirador, referia-se a ela como “a pequena brasileira”, e diz-se que Roosevelt teria lhe oferecido cidadania norte-americana – mas ela teria recusado, afirmando que “no Brasil eu nasci e no Brasil morrerei”.
Foi nos Estados Unidos que Bidu Sayão gravou a antológica versão da ária das Bachianas brasileiras nº 5, de Villa-Lobos. Em 1945, visitando os Estados Unidos, o compositor comandou o primeiro registro dessa que se tornaria provavelmente a mais conhecida de todas as suas obras. Leonard Rose, primeiro cellista da Filarmônica de Nova York, liderou o ensemble de oito violoncelos. A interpretação de Bidu, que mescla um timbre tonal puríssimo a um legato sensual, é tão equilibrada e fluente que esconde a dificuldade da música. Basta reparar na reprise da melodia, quando ela é toda cantarolada em bocca chiusa (literalmente, com a boca fechada) – o salto traiçoeiro de uma oitava na nota final é impecável. E vale lembrar que estávamos numa época pré-edições e cada um dos lados do 78 rotações original teve que ser tocado do início ao final, sem interrupções.
Durante os anos em que trabalhou no MET, Bidu cantou predominantemente papeis líricos, sendo seus personagens mais frequentes Mimì, de La bohème, e Susana, de Figaro, com 46 performances de cada uma. Nessa época, ela contou também com a ajuda de seu segundo marido, o barítono Giuseppe Danise, que retirou-se dos palcos para administrar a carreira dela. Somente após findar sua colaboração com o MET, em 1952, é que ela se arriscou em papeis mais dramáticos, como o de Margherita em Mefistofele, de Boito. Bidu Sayão fez sua última performance operística em 1954, numa montagem de Don Giovanni que inaugurou a Ópera Lírica de Chicago. A aposentadoria definitiva dos palcos veio em 1957. Em 1959, numa nova parceria com Villa-Lobos, gravou as canções de A floresta do Amazonas.
Embora tenha passado quase toda a vida fora do Brasil, Bidu nunca se desligou do país. Há uma versão que justifica sua ausência em nossos palcos pelo fato de ter sido vaiada em 1937, no Rio de Janeiro, ao cantar Pelléas et Mélisande. A vaia teria sido organizada pelos fãs da mezzo soprano Gabriella Besanzoni Lage, que não queriam que sua performance de Carmen fosse eclipsada pela aparição de Bidu. De qualquer forma, em 1995, aos 92 anos e radicada havia décadas nos Estados Unidos, Bidu veio ao Rio de Janeiro para receber uma homenagem inusitada: foi o tema do enredo da escola de samba Beija-Flor e desfilou no último carro alegórico da escola. Ela veio a morrer quatro anos depois, aos 96 anos, em decorrência de uma pneumonia, na cidade de Rockport, no estado do Maine, onde morava.
Em tudo o que cantou, Bidu Sayão revelou uma arte feita de precisão musical, veracidade emocional, sofisticada técnica vocal e um agudo senso de estilo. Nenhum outro cantor brasileiro chegou a obter sua consagração mundial. Há dez anos, seus discos foram reeditados nos Estados Unidos com sucesso por ocasião do centenário de seu nascimento, e o fato de ser lembrada até hoje é reflexo de tudo o que ela representou. No entanto, é espantoso o pouco material disponível sobre a artista editado em português, sejam gravações em áudio e vídeo ou livros tratando de sua trajetória. Enquanto essa injustiça não é reparada, uma boa fonte de arquivos sobre Bidu Sayão é o Youtube. Lá se pode encontrar gravações da artista para as obras de Villa-Lobos, ver algumas de suas performances em árias de óperas e conferir sua participação no desfile da Beija-Flor. Vale a pena passar algum tempo descobrindo ou relembrando as qualidades dessa verdadeira diva que, nas palavras de Mário de Andrade, “tem uma voz admirável, de encanto impregnante”.
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