Um abraço entre a ópera e o mundo contemporâneo

por Redação CONCERTO 30/12/2021

Por Brisa Marques*

No último dia vinte e um, tive a oportunidade de assistir ao ensaio geral da ópera Viramundo, inspirada livremente no livro do escritor mineiro Fernando Sabino: O grande mentecapto. Curiosamente, vivemos, em 2021, não só em Minas Gerais, mas no Brasil, uma espécie de resgate de nossa quase esquecida tradição operística. E não só: uma proposição de novos rumos para esta linguagem que, ainda hoje, é tão pouco estendida (ou seria entendida?) em seus entrelaçamentos com a contemporaneidade. 

Nascida na Academia de Ópera do Palácio das Artes (projeto inédito no país), idealizada pela encenadora Lívia Sabag e pelo maestro Gabriel Rhein-Schirato, a récita envolveu mais de quarenta pessoas, entre artistas, alunos e produtores. Também a partir destes encontros foram concebidos, com orientação do poeta e escritor Geraldo Carneiro, os cinco libretos sobre os quais Thaís Montanari, Denise Garcia, André Mehmari, Antônio Ribeiro e Maurício de Bonis compuseram as músicas. Uma ópera em cinco óperas, ou vice-versa.

A montagem parece trazer à tona (ainda que de maneira tímida, sutil e muito qualificada) reflexões sobre técnicas e formas de cantar as questões de nossa época, nossa identidade e nosso território. Realizar uma ópera em português me parece um grande passo no caminho da democratização do acesso à arte, bem como da descolonização da “cultura operística”.

Nesse sentido, os solistas se dedicaram com muita coragem e competência a essa missão, se revezando em papéis variados. A atuação do coro e a presença do ballet jovem também foram peças-chave nos movimentos da encenação. Assim como o cenário, os figurinos e a luz.  Sem dúvidas, um trabalho dramatúrgico altamente criativo, maduro e qualificado por parte da diretora cênica Rita Clemente, que teve como assistente o jovem Tiago Camargo.

As cortinas foram abertas em grande estilo com Circunvagantes, composição de Maurício de Bonis e libreto de Luiz Eduardo Frin, uma espécie de prólogo no qual três palhaços ensaiam seu “ganha pão”. Durante cerca de vinte minutos, vemos no palco fragmentos da história de Geraldo Viramundo, traduzidos em peripécias “clownescas” tragicamente contrastantes com uma Minas Gerais invadida pela lama e com os “Geraldos” atuais: brasileiros, mendigos, retirantes, marginais. 

Vale ressaltar as nuances que o texto ganhou nas bocas dos personagens; caminhos entre a palavra falada e cantada que engrandeceram as interpretações. Me chamou a atenção também a evocação do congado, ainda que sem a presença de cantores negros no elenco. A forte tradição cultural mineira, ressoada em citação breve, foi determinante na jornada narrativa do trio formado por Flávio Leite, Giovanni Tristacci e Ramon Mundim.

Não gosto de corpo acostumado, de Djalma Thuler e Denise Garcia, por sua vez, reabriu as cortinas do teatro com belíssimos cantos onomatopeicos do coro em alusão a pássaros brasileiros. Em seguida, o “trem” (mote da trama de Sabino e das cinco óperas apresentadas) abriu espaço para talvez um dos momentos mais ousados e irreverentes da noite: um samba do coro e o desfile rebolado do barítono Pedro Vianna num contraste estarrecedor com a clássica e conservadora postura do também barítono Lucas Nogueira.

Sobre As três mortes de Geraldo Viramundo, a música de André Mehmari me pareceu um navio imenso, construído em parceria com a poesia de Ricardo Severo, e entregue ao comandante Giovanni Tristacci, capitão do mar, que, consigo, carregou, com segurança e desenvoltura, toda a tripulação ali presente. 

Em Viramundo, Viraflor, libreto de Juliano Mendes e música de Antonio Ribeiro, a morte de Viramundo acabou por dar protagonismo às mulheres em um momento denso e fúnebre que se tornou mais leve com o ressurgimento do protagonista “Geraldo ninguém” em sua coroa de flores, mesmo após a partida eterna. 

Em O Julgamento, de Bruna Tameirão e Thais Montanari, se complementaram de modo promissor o texto, a música e a interpretação de Sylvia Klein; um ousado, irônico e extremamente personalizado delírio. No texto, referências explícitas ao momento extremista e violento que vivemos atualmente no país. Em cena, um tribunal. E mesmo com todos os ecos de Fernando Sabino, é com uma voz feminina em off a dizer o texto de Hannah Arent que o espetáculo termina.

“Não estamos aqui interessados na maldade, mas com o mal; não com o pecado e com os grandes vilões, que se tornaram heróis normalmente agindo por inveja ou ressentimento, mas com este todo-mundo que não é perverso, que não tem motivos especiais, e justamente por isso é capaz de um mal infinito; ao contrário do vilão, ele jamais encontra sua mortal meia-noite.”

Ao público cabe o julgamento final.

* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio

Cena de "Viramundo, uma ópera contemporânea" [Divulgação]
Cena de "Viramundo, uma ópera contemporânea" [Divulgação]

 

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