Texto de Lauro Machado Coelho publicado na edição de novembro de 2018 da Revista CONCERTO
Poucas óperas exercem sobre o público fascínio tão forte quanto a Carmen. E no entanto, ao ser estreada, no Théâtre de l'Opéra-Comique, em 3 de março de 1875, a obra-prima de Georges Bizet desagradou muito à plateia, que se espantou com o tom livre de uma história que a coloca como uma das precursoras do Verismo, a guinada realista que só ocorrerá em 1890. E estranhou as inovações de uma escrita musical de intensa originalidade.
Talvez só a Flauta Mágica, antes dela, tenha a mesma capacidade de fundir harmoniosamente materiais e estilos de procedência tão diversa, constituindo uma verdadeira síntese do teatro lírico de seu tempo. Há de tudo na Carmen: da tragédia (a morte da protagonista) à opereta (o buliçoso quinteto do ato, lI); do grand-opéra (as cenas corais dos atos I e IV) à linguagem da comédie larmoyante de tema sentimental (as cenas ligadas a Micaela). Sem falar no pitoresco da Habanera, da Seguidilha, da Canção do Toureador, fruto de um espanholismo em moda na França desde o casamento de Napoleão IlI com Eugenia Montijo, de que Lalo e Chabrier, Ravel e Debussy também dariam testemunho em suas obras.
Carmen não é apenas uma ópera adorada pelo público, várias vezes gravada e levada até para o cinema no filme de Francesco Rosi (e na Carmen Jones de Otto Preminger, transposta para os EUA e com elenco exclusivamente negro). Ela conseguiu ser amada por gente tão antagônica quanto Brahms e Wagner, Tchaikóvski e Busoni, Debussy e Saint-Sãens, graças ao equilíbrio que há em Bizet entre o músico e o dramaturgo. Ele conseguiu transfigurar a novela de Prosper Mérimée tomando a personagem original, ladra, devassa, mentirosa e sem escrúpulos, e transformando-a num símbolo avant la lettre da mulher forte, emancipada, que quer tomar nas mãos o seu próprio destino. E do tosco Don José do romance fez uma das personagens mais bem observadas da história da ópera, com um fascinante desenvolvimento psicológico que o leva da ingenuidade à descoberta de uma paixão que o faz esquecer dever e compromisso e, daí, a uma mistura de frustração e humilhação que o leva a destruir o que mais ama.
Na Carmen, culmina a capacidade de que Bizet já dera provas nos Pescadores de Pérolas, e nas infelizmente mal conhecidas La jolie filie de Perth e Djamileh, de adequar a música à natureza das personagens. Gounodiana, de corte melódico antiquado para Micaela, mocinha quadrada, de horizontes estreitos; deliberadamente banal para o toureiro Escamillo, figura vaidosa e superficial; de esfuziante sensualidade para a cigana; essa música é de extrema complexidade quando se trata de traçar as etapas da evolução psicológica de Don José.
Só é pena que esse ponto de chegada de um lento processo de maturação, que sinalizou caminhos novos para todo o drama lírico europeu, tenha sido também o ponto final na vida e na carreira de Georges Bizet. Ele morreu de uma crise cardíaca, em 3 de junho de 1875, aos 36 anos, exatamente três meses depois da frustrante estreia da ópera que haveria de ser um dos maiores marcos do gênero.
[O texto foi atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 2019]
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