O pássaro no crepúsculo

por Luciana Medeiros 24/04/2023

Carla Caramujo e Orquestra Petrobras Sinfônica apresentam as Quatro últimas canções de Strauss e a Titã de Mahler

...e já escurece o céu./  Apenas duas cotovias alçam voo, (...) /  Logo será hora de dormir. (...) / Ó paz imensa e tranquila / tão profunda no crepúsculo! / Como nós estamos cansados dessa jornada - / Seria talvez isso já a morte? (“Im Abendrot” - “Crepúsculo”, poema de Joseph von Eichendorff)

Na quarta-feira, dia 26, uma das sopranos europeias de destaque vai cantar pela primeira vez em sua carreira uma das obras sinfônicas de maior beleza e força na música de concerto – e faz essa estreia no Brasil. Carla Caramujo, portuguesa com formação em Londres, volta ao Rio de Janeiro sete meses depois de sua última passagem pela cidade para reencontrar a Orquestra Petrobras Sinfônica e Isaac Karabtchevsky num programa que se inicia com as Quatro últimas canções, de Richard Strauss. Na segunda parte, a orquestra traz a Sinfonia n° 1 de Gustav Mahler.

“Pela complexidade da composição, pela profundidade dos poemas de Herman Hesse e Joseph von Eichendorff, essa não é obra para se cantar quando muito jovem”, diz Carla, já em ensaios com a Opes. “É necessário que tenhamos já o domínio de nossas capacidades artísticas.”

Escritas em 1948, são verdadeiramente as últimas obras do alemão de Munique, nascido em 1864. A estreia foi póstuma, dois anos depois, no Royal Albert Hall, com a Philharmonia regida por Wilhelm Fürtwangler e a voz de Kirsten Flagstad. Sabe-se que as canções não foram concebidas como um ciclo e que a última canção – Im Abendrot – foi a primeira a ser composta. Strauss pôs o ponto final na última, chamada Setembro, exatamente no dia 20 daquele mês, dia em que acaba o verão no Hemisfério Norte. Ele morreu um ano depois, em setembro de 1949.

Há uma exaustão, mas sem amargura. É um olhar de cima, enxergando a morte como um crepúsculo, em paz e em silêncio

“Essas obras-primas foram sua despedida serena, de desprendimento dessa vida”, considera Carla. “Um dos poemas, Beim Schlafengehen – algo como Indo dormir – diz: ‘E minha alma, sem amarras, / deseja flutuar com as asas livres / para, na esfera mágica da noite, / viver uma vida profunda e múltipla’. É a passagem para a outra margem, mas a morte não é assustadora, é uma libertação do cansaço.”

O formato – com as quatro peças nesta sequência - se cristalizou. A aceitação da morte, o sentimento de transcendência dos poemas que a música transmite cria a atmosfera única. “Há uma exaustão, mas sem amargura. É um olhar de cima, enxergando a morte como um crepúsculo, em paz e em silêncio”, continua a soprano. “Melodicamente, é de uma perfeição arrebatadora. Há um solo de violino na terceira canção que tem tudo para ser brilhante, mas que precisa abraçar as cores da canção, uma nostalgia; é de uma incrível sensibilidade, mas extremamente virtuosístico. A melodia é de uma simplicidade que ao mesmo tempo transporta um estado emocional complexo.”

O preparo para as enormes exigências vocais das canções, diz Carla, começou por um estudo harmônico; passa pelo estudo dos textos e do alemão e a performance vocal, com “extremo controle da afinação, que é muito particular, em um fraseado muito leve e lírico". "Há modulações abruptas. Temos uma região média com muitas nuances e a necessidade de subir para o agudo com muita leveza e flexibilidade.” Talvez como o crepúsculo lento e o pássaro que abre as asas e se desprende? “Bastante assim. Há uma dose daquilo que é terreno e, de repente, um sublimar de tudo na passagem para o espiritual.”

O convite para essa apresentação veio no final do concerto de outubro de 2022, em que orquestra, maestro e soprano interpretaram a Quarta sinfonia de Mahler e as Cartas Portuguesas, de João Guilherme Ripper, “pelas mãos do mestre Isaac já no segundo ensaio que tivemos”, revela Carla. “É um privilégio estar com ele, que tem a experiência de trabalhar esse repertório, o fez com grandes nomes e a imensa e profunda capacidade e na fase de excelência e de vida em que ele está.”

A estreia de Carla na obra de Strauss se dá no país em que “só me acarinham”, reforça. “Depois dessa estreia, seguirei cantando a obra e, daqui a 15 anos, farei as canções com outra maturidade.”

Em sua passagem pelo Rio de Janeiro, a soprano também faz recital no dia 28, no Palácio São Clemente, ao lado da pianista Priscila Bomfim. No programa, canções de Antônio Fragoso, Fernando Lapa, Ripper e Francisco Lacerda.

Veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

Leia também
Notícias 
Prepare-se: os destaques da agenda musical da semana
Crítica Buchbinder apresenta Beethoven superlativo na Sala São Paulo, por Nelson Rubens Kunze
Crítica Um Mozart de belas qualidades, por Jorge Coli

Carla Caramujo durante concerto no ano passado com a Petrobras Sinfônica [Divulgação/Alex Ferro]
Carla Caramujo durante concerto no ano passado com a Petrobras Sinfônica [Divulgação/Alex Ferro]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.