Há um momento em Actéon, de Charpentier, no qual a pastoral se transforma em tragédia. Nas primeiras cenas, o pastor Actéon celebra os elementos, o prazer da caça, a liberdade, a solidão tranquila. E Diana e suas ninfas, o amor, a beleza, o mundo natural, a paz do retiro. Até que, à medida em que entramos na cena 3, o encontro do mortal com a deusa nos leva a outros caminhos: Actéon precisa ser punido por sua insolência; transformado em um cervo, é devorado pelos cães que um dia caçaram ao seu lado.
A mudança no enredo é também musical, que o conjunto liderado por Juliano Buosi e composto por especialistas nesse repertório soube recriar com imaginação na produção da obra apresentada pelo Theatro Municipal de São Paulo na Sala do Conservatório, na Praça das Artes. Não foi a única qualidade da execução musical, muito atenta ao ritmo da narrativa e cuidadosa na recriação das múltiplas camadas da música.
E há também um cuidado no diálogo com os cantores. Entre eles, a soprano Marília Vargas, como Diana. Sua especialização neste repertório permite a ela extrair uma riqueza de coloridos e nuances de tirar o fôlego. Foi muito especial também o Actéon de Jabez Lima e a sóbria e marcante Juno de Keila de Moraes.
Corpo
Para narrar a história de Actéon, o diretor Leonardo Ventura transforma a Sala do Conservatório em um vale que nasce entre as duas arquibancadas na qual se coloca o público. Esse vale tem, de um lado, no palco da Sala, a gruta; e, de outro, o ambiente em que permanecem os caçadores.
Na relação entre as deusas e os caçadores, Ventura enxerga um embate entre o feminino e uma masculinidade que destrói. Sua proposta, então, é pensar uma possível transformação, à medida em que os dois lados vão se aproximando.
É particularmente interessante como ele propõe essa aproximação. A ideia de um prólogo, encarnado por Morgana Manfrin, atriz e performer trans, sugere o corpo como agente dessa mudança, não um corpo sensualizado, mas um corpo em contato com sua própria humanidade. A transformação do corpo de Actéon é o ponto de partida para a transformação da própria visão a respeito do corpo e seu papel social, uma visão nova que se propõe menos rígida e mais aberta ao diálogo e à aceitação – e na qual o feminino e o masculino são relativizados como definições estanques.
Reflexões
A produção marcou a estreia da série Ópera Fora da Caixa, que tem como objetivo levar a ópera para palcos alternativos – e refletir sobre as possibilidades estéticas que esse movimento possibilita. Uma reflexão que não diz respeito apenas à plasticidade que sair do palco exige, mas também ao que essa relação com novos espaços, esse tensionamento, nos permite entender a respeito do próprio gênero. É estimulante.
Nesse sentido, torna-se central a escolha do espaço. E a Sala do Conservatório, em Actéon, pareceu sufocar as possibilidades que a direção do espetáculo propôs. Do ponto de vista musical, pareceu desequilibrada a equação entre as vozes do coro, por exemplo. Do ponto de vista cênico, as interessantes ideias de Leonardo Ventura pareciam pedir a todo instante mais espaço para que pudessem assumir toda sua riqueza.
A sensação é de que se trocou uma caixa por outra, menos óbvia para uma ópera, certo, mas ainda assim uma caixa, que colocou limites para o espetáculo. Este foi o primeiro da série, e é natural que se tente dar passos cuidadosos nessa primeira saída do palco. Mas as dificuldades que outros espaços podem gerar também fazem parte do processo de distensão a que a série se propõe. São Paulo é uma cidade grande, com uma arquitetura tão diversa quanto desafiadora, e recantos a serem descobertos. A Sala do Conservatório é um deles. Mas perto demais de casa.
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