Guerra-Peixe em toda a sua riqueza originalidade

por Camila Fresca 01/08/2022

Acaba de ser lançado mais um título da série A Música do Brasil, do projeto Brasil em Concerto, do selo Naxos. Trata-se do primeiro dedicado ao compositor César Guerra-Peixe (1914-1993). Se estivéssemos falando de uma nova gravação de Beethoven, seria natural que nos concentrássemos na performance das obras. Em se tratando de um compositor como Guerra-Peixe, no entanto, é ainda necessário falar um pouco sobre as características de sua música e de sua trajetória. 

Guerra-Peixe nasceu em Petrópolis, Rio de Janeiro, e já na infância tocava violão, piano e violino. Formou-se neste instrumento no Instituto Nacional de Música, estudou composição no Conservatório Brasileiro de Música e, em 1944, já era músico de sólido métier e intensa atuação profissional quando foi procurar Koellreutter para se aprofundar na técnica dodecafônica.

Guerra-Peixe foi um músico bastante versátil: trabalhou como instrumentista de orquestras de salão, como compositor de música de concerto e trilhas sonoras e foi ainda um exímio arranjador de música popular, trabalhando para orquestras de rádio e TV – chegou a escrever arranjos para canções de Chico Buarque, Luiz Gonzaga e Tom Jobim e, em 1968, criou a Escola de Música Popular do MIS-RJ.

Embora tenha tido uma fase dodecafônica, entre 1944 e 49 (da qual resultaram cerca de 50 peças) Guerra-Peixe foi essencialmente um autor interessado nas tradições populares brasileiras, que serviram de fonte para suas composições. 

O compositor foi a fundo, transformando interesse em pesquisa: durante três anos, entre 1949 e 1952, viveu no Recife, pesquisando e coletando maracatus, catimbós e xangôs em cidades pernambucanas (parte dessas pesquisas foi publicada no livro Maracatus do Recife, de 1955). Mais tarde, já morando em São Paulo, Guerra-Peixe desenvolveu trabalho semelhante, visitando o interior do estado e coletando jongos, sambas, folias-de-reis etc. Para o jornalista Luiz Paulo Horta, Guerra-Peixe foi o nosso Bartók, o compositor que se debruçou mais seriamente sobre nossas tradições populares e a partir delas buscou estabelecer uma música de características nacionais. 

Além de excelentes, as obras são sedutoras sem nunca serem banais, e sua capacidade de comunicação só encontra paralelo em algumas das peças de Villa-Lobos

É essa vertente de seu trabalho a mostrada pela Orquestra Filarmônica de Goiás que, sob regência de Neil Thomson, registra três peças do compositor: as suítes sinfônicas nº 1, “Paulista”, e n º 2, “Pernambucana”, ambas de 1955, e Roda de amigos, de 1979. Nas suítes, Guerra-Peixe recria elementos da dança e música popular, como o cateretê e o jongo (na paulista) ou o maracatu e o frevo (na pernambucana). Com uma orquestração clara e equilibrada e com elementos nacionais evidentes, as obras nunca caem em clichê ou exotismos, surpreendendo-nos pelos caminhos criativos e ousados que o compositor adota.

Roda de amigos introduz a prática popular urbana das rodas de samba ou choro. Cada movimento é dedicado a um amigo músico e tem como solista o instrumento que este toca. Assim, temos os seguintes movimentos: “o rabugento”, para o fagotista Noel Devos; “o teimoso”, para o clarinetista José Botelho; “o melancólico”, para o oboísta Kleber Veiga; e “o travesso”, para o flautista Carlos Rato.

Um aspecto sempre me chamou atenção nas obras de Guerra-Peixe, e todos os que ouvirem o disco poderão confirmá-lo: a capacidade de comunicação imediata com o público que suas peças estabelecem. Além de excelentes, as obras são sedutoras sem nunca serem banais, e sua capacidade de comunicação só encontra paralelo em algumas das peças de Villa-Lobos. Os dois compositores foram contemporâneos e, embora muitos se ressentissem de Villa-Lobos – seja por questões pessoais, seja pela sombra que ele fazia em seus contemporâneos – Guerra-Peixe era dos poucos a criticá-lo publicamente. 

A interpretação é brilhante e precisa e a gravação, de primeira linha

O lançamento do álbum tem tudo para se tornar um marco no conhecimento e difusão da obra de Guerra-Peixe, um dos maiores compositores brasileiros do século XX. E isso se deve à qualidade musical e técnica do registro. É impressionante o trabalho da Filarmônica de Goiás. Reestruturada em 2012, ela ganhou dimensões nacionais a partir de 2014, quando nomeou Neil Thomson como seu diretor artístico. O pouco tempo de trabalho – menos de 10 anos – para um resultado desse nível já justificaria a surpresa, que se torna ainda maior após as dificuldades recentes que o conjunto enfrentou, chegando a paralisar suas atividades e colocando a própria existência da orquestra em risco. A interpretação é brilhante e precisa e a gravação, de primeira linha – ao contrário de registros antigos da obra do compositor, em que se ouve o som da orquestra “achatado” ao fundo. 

Não apenas Guerra-Peixe, mas também a Filarmônica de Goiás ganha projeção internacional com o disco, integrante dessa que vai se consolidando como uma coleção histórica dedicada à música brasileira por iniciativa do Itamaraty, em parceria com a Naxos e as orquestras brasileiras envolvidas. É das melhores ações que a diplomacia atual poderia fazer para recuperar a imagem tão combalida do Brasil nos últimos anos. Um soft power da melhor qualidade. 

[O disco com as obra de Guerra-Peixe, assim como outros lançamentos da coleção A música do Brasil, está disponível na Loja CLÁSSICOS; clique aqui]

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O compositor Guerra-Peixe [Divulgação]
O compositor Guerra-Peixe [Divulgação]

 

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