A arte de Maria João Pires

por Nelson Rubens Kunze 10/10/2019

Não é a primeira vez que ouvimos Maria João Pires em São Paulo. De memória, lembro-me do recital no antigo Teatro Cultura Artística – ao lado do pianista Ricardo Castro –, e de outro na Sala São Paulo, em duo com Antonio Meneses. Todas suas apresentações têm um denominador comum: uma verdadeira transcendência artística, no sentido de que somos transportados a algum lugar em que a música toca a alma e desvenda mistérios. Assim, em um repertório que é sua especialidade, foi mais uma vez uma experiência iluminadora acompanhar a arte dessa senhora de 75 anos, no concerto extra-assinatura da Cultura Artística, terça-feira, dia 8, na Sala São Paulo.

A apresentação começou com a Sonata nº 8, Patética, de Beethoven. A obra foi escrita ainda em fins do século 18, em 1798, quando Beethoven tinha 27 anos. É um dos grandes documentos de sua primeira fase de criação, já com importantes inovações formais e harmônicas, mas ainda com ecos do classicismo. A leitura de Maria João Pires é de absoluta consistência, é uma versão acabada. A sua interpretação, de uma transparência impressionante, consegue temperar na dose exata os ânimos do incipiente drama romântico.

Maria João Pires na Sala São Paulo [Revista CONCERTO]
Maria João Pires na Sala São Paulo [Revista CONCERTO]

Seguiram-se seis noturnos de Chopin, os três do op.9 (escritos em 1830-32), os dois do op. 27 (1835) e o nº 1 op. 72 (1827-29). Do ponto de vista formal, os noturnos não são tão exigentes quanto Beethoven, é verdade. Mas o seu melodismo poético talvez não encontre paralelos na história da música. E se o público já estava dominado pelo Beethoven, aqui foi uma elevação. A interpretação de Maria João Pires, seu senso de agógica, sem nenhum maneirismo, atinge um grau de expressão artística raro mesmo entre os grandes músicos da atualidade.

O recital fechou com a espetacular Sonata nº 32, op. 111, de Beethoven, composta em 1822, e que, junto com a Missa Solemnis, as Variações Diabelli e o último conjunto de Bagatelas, pertence ao derradeiro período de criação do mestre – Beethoven faleceu em 1827. A obra por si só já é um monumento, que, em dois movimentos, reinventa a forma da sonata tradicional.

Mais uma vez Maria João Pires imprimiu uma concentração a sua interpretação que magnetizou a Sala São Paulo. A clareza das articulações, o equilíbrio das dinâmicas, o incrível domínio técnico e, sobretudo, um discurso musical orgânico dominaram de forma absoluta a ambiciosa obra de Beethoven, em uma manifestação artística de altíssimo nível.

De bis, como se não tivesse sido suficiente, Pires ainda emendou uma das Bagatelas op. 116.

Depois de ter tocado no Rio de Janeiro ontem (dia 9 de outubro), Maria João Pires ainda realiza uma residência artística no Instituto Baía dos Vermelhos, na Ilhabela, litoral de São Paulo, na semana que vem, que se encerra com um recital público no dia 19 de outubro (junto com o pianista sérvio Milos Popovic). Finalmente, no dia 26 de outubro, a pianista ainda realiza um recital no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Não percam!

Clique aqui para mais informações sobre o recital no Teatro Vermelhos, na Ilhabela

Clique aqui para mais informações sobre o recital no Palácio das Artes de Belo Horizonte

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