Com Arnaldo Cohen, música de câmara é destaque no Festival de Campos

por Camila Fresca 29/07/2019

A 50ª edição do Festival de Inverno de Campos do Jordão terminou no último final de semana. Ao longo de um mês, foram realizados cerca de 130 concertos, incluindo apresentações de música popular, com curadoria da Orquestra Jazz Sinfônica. 

É bom que o maior festival de música da América Latina tenha espaço para tudo, com eventos que atraiam público expressivo e gerem mídia espontânea; com apresentações que reforcem seu caráter original e tragam o repertório clássico; que tenha espetáculos solo, orquestra, música popular, contemporânea; recital de alunos, de professores e de alunos com professores. E que tenha também espaço para a música de câmara de alto nível, sem concessões. 

Um concerto desse último tipo aconteceu na quinta-feira, dia 25, na Sala São Paulo. No programa, trios de Brahms e Mendelssohn capitaneados pelo pianista Arnaldo Cohen. A apresentação aconteceu na sala principal e eu, da mesma forma que João Marcos Coelho ao assistir outro concerto, no dia 19, fiquei surpresa com a quantidade de público, que enchia a sala e acompanhou tudo com entusiasmo e prazer, a medir pelas efusivas palmas e pedidos de bis ao final. 

Os concertos públicos pagos de música clássica se estabeleceram na Europa no início do século XIX. Dentre os diversos tipos de espetáculo, surgiram também aqueles dedicados exclusivamente à música de câmara. Desde o início, no entanto, o gênero se viu num dilema: se de um lado tinha custos baixos de produção e facilidade de ensaios (em comparação a uma orquestra), de outro as salas públicas, cada vez maiores e com acústica reverberante, estavam decididamente em desacordo com a interioridade do gênero e os detalhes intrincados de sua escrita. As performances públicas pareciam, de certa forma, a antítese de seu idioma.

Esse dilema foi equilibrado aos poucos, com cooperações de vários lados: promotores faziam adaptações nas salas ou mesmo construíam algumas destinadas a formações camerísticas; os intérpretes, por sua vez, aprenderam a projetar o som para fora ao invés de para dentro do grupo; e os compositores reagiram ao novo meio com uma escrita ressoante e texturas mais vigorosas. 

Recital de Arnaldo Cohen, Elissa Cassini e Viktor Uzur na Sala São Paulo [Divulgação]
Recital de Arnaldo Cohen, Elissa Cassini e Viktor Uzur na Sala São Paulo [Divulgação]

Assim, ainda que num primeiro momento o palco da Sala São Paulo parecesse muito grande e o público enorme para ouvir apenas três músicos, o resultado, sob o ponto de vista sonoro e de apreciação musical geral, foi plenamente satisfatório.

O repertório era puro romantismo alemão do século XIX. A estética romântica mudou muito ao longo desse século, mas, apesar das décadas que separavam as duas obras, vários aspectos as aproximavam, a começar pela duração (cerca de 30 minutos cada) e pela forma, manifesta na tradicional estrutura em quatro movimentos, sendo sua sequência, em ambos os casos, allegro, andante, scherzo e um final novamente em allegro.

O Trio nº 2 op.87 de Brahms, que abriu a noite, foi finalizado em 1882, portanto já no último quarto do século XIX. Obra densa e escura, recebeu impecável interpretação de Winston Ramalho (violino), Viktor Uzur (violoncelo) e do já mencionado Arnaldo Cohen. Foi muito bom poder ouvir o excelente Winston Ramalho, violinista brasileiro que atua em Curitiba e que pouco se apresenta em São Paulo. 

Na segunda parte do programa, a francesa Elissa Cassini assumiu o violino para, junto com os colegas, interpretar o Trio nº 1 op.49 de Mendelssohn, peça lírica e luminosa composta em 1839, portanto ainda na primeira metade do século XIX. De novo, uma interpretação de altíssimo nível, com intérpretes entrosados que se comunicavam ao relance de um olhar ou ao suspiro de uma respiração. 

Vale destacar o espetáculo à parte que foi acompanhar a performance de Arnaldo Cohen. Em plena forma aos 71 anos, ele é (como sabemos) um tremendo pianista, e é também um excepcional camerista – parecia antecipar as reações dos colegas, sabia fazer-se acompanhador quando era o caso, e um brilhante solista nos momentos em que a partitura assim exigia. 

Foi um lindo concerto que, a somar-se a outras performances que assisti – como a ótima Orquestra do Festival no dia 21, ou ainda ao relato dos colegas – prova que o Festival de Campos do Jordão continua peça central em nossa vida musical, tanto sob o aspecto de formação quanto de difusão. Uma luz de incrível irradiação para iluminar tempos obscuros. 

[Camila Fresca é autora dos textos do livro sobre os 50 anos do Festival de Inverno de Campos do Jordão, publicado durante o evento pela Fundação Osesp.]

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