‘Devoção’: quando um personagem se torna uma ideia

por João Luiz Sampaio 23/07/2024

BELO HORIZONTE – O Palácio das Artes incorporou à sua rotina nos últimos anos a encomenda e estreia de novas óperas. Em 2021, como resultado da Academia de Ópera dirigida por Livia Sabag e Gabriel Rhein-Schirato, subiu ao palco Viramundo, espetáculo composto por cinco breves óperas inspiradas em O Grande Mentecapto, de Fernando Sabino, assinadas por André Mehmari, Denise Garcia, Antonio Ribeiro, Maurício de Bonis e Thais Montanari a partir de textos dos alunos do projeto. Em 2022, foi a vez de Aleijadinho, de Ernani Aguiar, com libreto de André Cardoso. E, no ano passado, Matraga, música e texto de Rufo Herrera, ópera baseada em A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa.

O investimento na criação feito pela instituição tem um recorte bem claro: a valorização da história e dos personagens de Minas Gerais. E, nessa linha, a atração deste ano foi Devoção, encomendada ao compositor João Guilherme Ripper e ao libretista André Cardoso, sobre Feliciano Mendes. A ópera foi apresentada no dia 13 de julho em Congonhas do Campo, onde viveu o personagem. E, na sexta, 19, iniciou temporada no palco do Palácio das Artes, em Belo Horizonte (a última récita acontece hoje, dia 23; veja mais informações no Roteiro Musical).

Português, Feliciano Mendes chegou a Congonhas em meados do século XVIII, integrando o grupo de bandeirantes liderado por Bartolomeu Bueno. Seu objetivo era trabalhar na exploração do ouro. Tornou-se um homem muito rico, até que caiu doente, ficando à beira da morte. Fez, então, uma promessa: uma vez curado, doaria toda a sua fortuna para a construção de um santuário em Congonhas. Cumpriu o que prometeu e, recolhido à vida de um ermitão, dedicou o tempo que lhe restava a pedir esmolas para ajudar a levantar o santuário.

É essa a história que Ripper e Cardoso se propõem a contar em Devoção, de maneira linear, cronológica, próxima o máximo possível dos acontecimentos históricos – a única liberdade assumida foi a inserção de uma personagem fictícia, Mercês, a mulher de Feliciano. As demais invenções – a Beata, o Mascate, o Tropeiro, são personagens novos, mas que se prestam à caracterização do período mais do que a um comentário à história.

A importância que a ópera tem na trajetória de Ripper é conhecida. Mas, mesmo quem está familiarizado com suas obras, do monólogo Domitila a peças mais recentes, como Piedade, não terá como não se surpreender com o grau de sofisticação e refinamento que ele atinge na relação com o gênero em Devoção.

A riqueza da orquestração; a expressão única na construção de cada um dos solos, da delicadeza da ária de Mercês ao caráter aventureiro da canção do Tropeiro, passando pelo misto de intimismo e heroísmo na cena em que Feliciano revela seus planos para o santuário; a riqueza melódica das passagens corais; o virtuosismo orquestral da Congada. A lista poderia continuar, mas, mais do que uma soma de momentos, o que se revela é a compreensão da música como teatro e um métier indiscutível, que fica claro, por exemplo, na escrita vocal, que torna o texto cantado em português sempre compreensível e poderia até mesmo dispensar o uso de legendas (pois é, quando se sabe fazer, dá para fazer). 

A realização musical também foi ponto alto do espetáculo. A Orquestra Sinfônica de Minas Gerais regida por Ligia Amadio é um grupo equilibrado, de sonoridade bem acabada, capaz de recriar com verve toda a riqueza da partitura. O Feliciano de Matheus Pompeu, tão rico em coloridos e recursos expressivos, o coloca como nome central da nova geração da ópera brasileira, da qual faz parte também o barítono Johnny França, de graves escuros, redondos. Luxuosas as presenças de Savio Sperandio, como o Padre Antônio Rodrigues de Sousa, e de Carla Caramujo, Mercês. E uma revelação a voz da mezzo soprano Bárbara Brasil como a Beata. 

Mas há, no libreto de Devoção, algumas opções e propostas que acabam limitando a criação musical ao impedir o estabelecimento de um arco dramático em que haja desenvolvimento e transformação das personagens. É representativo, nesse sentido, que o momento-chave da história, a doença de Feliciano e a reflexão que o leva a abrir mão de suas riquezas em favor da cura, não seja retratado no palco. Do primeiro ato, que se encerra com a partida de Feliciano para o garimpo, seguimos direto para a cena em que, na abertura do segundo ato, já curado, ele narra ao padre è a beata a decisão de usar suas posses para a construção do santuário.

Não parece um erro, mas, sim, uma escolha, com impacto na percepção da obra como um todo. Quando se abre mão de mostrar no palco o conflito pelo qual passa Feliciano, optando-se pelo relato que ele, depois, faz dele, a experiência individual se transforma em testemunho – e o personagem se despe de sua humanidade para representar uma ideia. Devoção ganha, assim, ares missionários, de um hino em defesa do sacrifício pessoal e da fé católica e pouco resta a dizer sobre os personagens: não por acaso o relato sobre a decisão de Feliciano é repetido três vezes durante o segundo ato – na sua ária, na cena da beata e do tropeiro com o povo e no momento em que Feliciano retorna carregando a cruz.

Não se trata de questionar o conteúdo ou validade da ideia, mas suas consequências para o espetáculo, como a perda de força teatral, que em muitos momentos deixa a música sozinha na tentativa de criar contrastes, dúvidas e questionamentos que o texto não traz. Da mesma forma, o caráter de ode enfraquece e torna pouco orgânica a ideia do diretor Ronaldo Zero de fazer da montagem de Devoção uma celebração do “sincretismo mineiro” e de uma cultura “que passa por Chico Xavier, Milton Nascimento, Guimarães Rosa, Drummond”, como explicou em entrevista à Revista CONCERTO. As citações que ele faz nesse sentido acabam sendo pouco mais do que ideias pontuais, interessantes, sim, mas sem grande consequência no todo do espetáculo.

Devoção é definida como uma ópera-oratório. Talvez no palco de concertos, sem encenação, a obra possa ganhar outra dimensão e levar a percepções diferentes. Como teatro, ficou aquém daquilo que a história poderia sugerir. 

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Cena da produção de 'Devoção', no Palácio das Artes de Belo Horizonte [Divulgação]
Cena da produção de 'Devoção', no Palácio das Artes de Belo Horizonte [Divulgação]

 

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