“El Niño”: um furacão no Municipal

por Jorge Coli 18/12/2018

El Niño, de John Adams, foi estreado no dia 15 de dezembro de 2000, em Paris. De lá para cá, vem se tornando uma obra de sucesso, apresentada nos finais de ano pelo mundo inteiro. Excelente ideia do maestro Minczuk em oferecê-la no Municipal de São Paulo agora, nestas vésperas de Natal.  Uma descoberta.

El Niño foi chamado de ópera-oratório pelo seu autor. Pode ser apresentado em forma de concerto, como no Municipal, ou encenado. O tema é a natividade de Cristo e o libreto agrega textos em inglês, latim e espanhol, de várias fontes: poesia mística de Sor Juana Ines de la Cruz, poesia lírica de Gabriela Mistral, passagens dos Evangelhos, tanto dos canônicos quanto dos apócrifos, e ainda Rosario Castellanos, Huidobro, Rubén Dario, formando uma constelação que ultrapassa o sentido puramente cristão. El Niño, o título em espanhol, designa o menino-deus, está claro.

Mas é impossível não evocar o fenômeno meteorológico do Pacífico com o mesmo nome e que atinge tão duramente a América Central e do Sul, além das perturbações climáticas ameaçadoras a que assistimos, alguns de nós com apreensão, outros indiferentes. El Niño mescla o nascimento de Cristo e os medos de hoje. É assim que, após a impressionante cena de Herodes e do massacre dos inocentes, ouve-se uma passagem do Memoria de Tatlelolco escrito pela mexicana Rosario Castellanos. O trecho fala de estudantes chacinados na cidade do México, e de como o fato foi escondido:

La plaza amaneció barrida; los periódicos dieron como noticia principal el estado del tiempo. Y en la televisión, en la radio y el cine no hubo ningún cambio de programa, ningún anuncio intercalado ni un minuto de silencio en el banquete.
(Pues prosiguió el banquete.)

El niño fala da dor humana que se espelha no nascimento de Jesus, que vai da manjedoura pobre ao massacre dos inocentes e à fuga para o Egito. Nada pretensioso ou confuso. Há um partido de simplicidade ingênua e clara, como nos “milagres” e “mistérios” do teatro medieval.

Clara é também a escrita musical, sem harmonias rebuscadas, com ritmos insistentes. O estilo flexível adapta-se às situações diversas, permitindo uma verdadeira progressão dramática nessa partitura tão tonal. Clareza e narrativa tomaram o público com um instinto infalível de comunicação. Bastava perceber a sala cheia grudar, ansiosa, nessa obra composta há apenas 19 anos, fato muito raro na música contemporânea. É hora de reconhecer que a tradição melódica, rítmica e harmônica pode ser atual e poderosa, talvez mais do que a “dilatação dos limites sonoros” que caracterizou as vanguardas.

[Divulgação / Fabiana Stig]
[Divulgação / Fabiana Stig]

Os intérpretes foram em tudo dignos dessa grande partitura. Minczuk, para começar, dominando as enormes massas sonoras da orquestra, dos diferentes coros e dos solistas, sem perder essa intensidade que caracteriza tanto suas interpretações. A Sinfônica Municipal respondeu brilhantemente às enormes exigências de precisão.

Dentre os solistas, começo assinalando Licio Bruno. A presença que incutiu no personagem de José, sua perplexidade raivosa quando descobre a gravidez de Maria, foi imensa. Até o final, seu aporte à partitura manteve-se gigantesco. Maravilhosas, as duas cantoras: os sopranos Marly Montoni, brasileira, e a argentina Carla Filipcic Holm, a primeira com a mais sensível finura musical e dramática, a segunda com esplêndidos graves e poderoso volume.

A partitura pede também três contratenores. O mais solicitado foi Bruno de Sá, brasileiro, revelado pela Academia de Ópera do Theatro São Pedro. É um artista do qual não me canso de apreciar as qualidades: beleza de timbre, volume, grande sentido musical. Os outros dois, Paul Flight, americano, e Geilson Santos, estiveram à altura, formando um trio de altíssimo nível.

O Coro Lírico, o Coral Paulistano e o Coro Infanto-juvenil da Escola Municipal de Música de São Paulo (que foi instalado nas poltronas laterais do balcão nobre) vibrantes, precisos, excelentes, e seus respectivos maestros, Mário Zaccaro, Naomi Munakata e Regina Kinjo mereceram  aclamação do público.

Com essa obra de realização tão complexa e nada fácil, as forças do Theatro Municipal de São Paulo demonstraram atingir um verdadeiro nível de excelência.  

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