‘Harmonielehre’ é destaque do concerto da Osesp

por Nelson Rubens Kunze 08/04/2022

Sinfonia de texturas e timbres, obra de John Adams já é um dos pontos altos da temporada

Harmonielehre é o nome da obra do compositor John Adams (1947) que a Osesp apresenta no programa desta semana, na Sala São Paulo. É um nome infeliz, pois a obra em questão não tem nada do que um sisudo “tratado de harmonia” poderia sugerir. Adams diz que a razão do nome é o livro que Arnold Schönberg (1874-1951) escreveu no início do século passado (1911), com o mesmo título. Partindo daquela Harmonielehre, Adams queria defender a ideia que ainda era possível fazer muito dentro dos cânones harmônicos do século XIX. Vamos lembrar, que a criação musical da segunda metade do século XX – e Harmonielehre é de 1985 – estava bastante polarizada entre ser tonal ou atonal.

Mas, ouvindo hoje, a última coisa que nos ocorre – apesar de claras referências a criações do romantismo tardio – é a de tentar estabelecer qualquer relação harmônica com a grande música tonal que fundou a música clássica ocidental. Na genial criação de Adams, o fato de ela ser tonal é secundário. (E ela é absolutamente original, que era uma das regras de ouro de Schönberg...)

Do ponto de vista formal, Harmonielehre é uma sinfonia em três movimentos, mas dentro de uma concepção de desenvolvimento minimalista. Assim, a obra prescinde da organização dos temas como estamos acostumados (exposição, desenvolvimento e reexposição), para propor uma escuta de tramas sonoras que se sucedem, estabelecendo grandes arcos melódicos marcados por eventos rítmicos. É uma emocionante viagem pelo mundo dos sons – é uma sinfonia de texturas e timbres – dentro de um arcabouço sinfônico. Sem dúvida, uma das grandes criações de nosso tempo.

Ouvir Harmonielehre ao vivo, como temos a oportunidade nesses dias, é um privilégio. Ela demanda uma grande e competente orquestra e um grande e competente maestro – e quando isso acontece em um espaço como a Sala São Paulo, aí é um acontecimento raro. 

Foi excelente a apresentação da Osesp ontem (7/4). Dirigido pelo maestro norte-americano David Robertson, o grupo alcançou um ótimo resultado na geração desse fluxo musical formado pelas texturas motívicas do minimalismo. No texto do programa (vale a leitura), Adams conta de sonhos que inspiraram a composição – não se sabe que substância ele ingeriu para ter a visão de um petroleiro na Baía de São Francisco transformar-se em um foguete e disparar rumo ao espaço sideral, ou de ver a sua pequena filha voando pelos ares nos ombros de Meister Eckhardt, o teólogo místico da Idade Média. Se as histórias são interessantes, não é necessário conhecê-las para curtir a obra – cada um de nós fará as suas próprias associações e descobertas.

Harmonielehre foi o encerramento de um concerto no todo muito bom. 

A noite iniciou-se com a Sinfonia de câmara nº 2 de Schönberg (justamente o autor do livro Harmonielehre), figura central que mais tarde marcaria a história com o dodecafonismo e a atonalidade. A Sinfonia de câmara nº 2 foi composta em 1906 e quase 30 anos depois, em 1939, revista e finalizada. Está estruturada em 3 movimentos e tem ainda a linguagem de um tonalismo expandido. Também aqui a orquestra exibiu virtuosismo, em uma leitura que expôs com transparência as diversas vozes orquestrais.

A terceira obra da noite foi o Concerto para clarinete de Aaron Copland (1900-1990), de 1947, uma encomenda do clarinetista Benny Goodman. A peça, em dois movimentos, tem o acompanhamento de uma orquestra de cordas, harpa e piano. A interpretação foi do exímio Anthony McGill, primeiro clarinete da Filarmônica de Nova York. (McGill é o primeiro músico negro a ocupar um cargo de solista na Filarmônica de Nova York e tem uma importante atuação na luta antirracismo nos Estados Unidos.) O simpático e comunicativo McGill demonstrou absoluto domínio do instrumento e uma musicalidade natural, em uma interpretação muito bonita. Pena que, apesar dos insistentes aplausos, o músico não tenha concedido um bis.

Deixo o melhor para o fim, que foi a presença do brilhante maestro David Robertson, seguramente um dos mais gabaritados regentes da atualidade para o repertório dos séculos XX e XXI. Com grande musicalidade e gestos claros, Robertson é guia seguro em partituras de grande complexidade. Lembro-me de tê-lo visto reger antes em São Paulo. Robertson dirigiu o Ensemble Intercontemporaine, e com o grupo esteve no Teatro Cultura Artística nos anos 1990, alternando a regência com ninguém menos do que... Pierre Boulez. Falta dizer alguma coisa?

Não perca o concerto da Osesp desta semana, que será repetido hoje (sexta) à noite e amanhã (sábado) à tarde. Pelas sutilezas e riquezas tímbricas, o concerto ganha muito na audição ao vivo na Sala São Paulo. Mas, se você não puder comparecer, haverá também transmissão direta pelo YouTube (clique aqui para acessar o canal).

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Maestro David Robertson recebe os aplausos após a apresentação com a Osesp (Revista CONCERTO)
Maestro David Robertson recebe os aplausos após a apresentação com a Osesp (Revista CONCERTO)

 

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