Na produção atualmente em cartaz no Theatro São Pedro de São Paulo, a ópera Riders to the Sea (rebatizada de Homens ao mar) é precedida da Fantasia sobre um tema de Thomas Tallis. São duas obras do britânico Ralph Vaughan Williams, o que de cara sugere a pertinência da escolha, pois permite justapor, no retrato de um compositor pouco tocado por aqui, duas de suas peças mais características na mistura de influências de sua trajetória, da releitura do passado renascentista, no caso da Fantasia, à assimilação da estética francesa, determinante em sua formação e na partitura da ópera.
Talvez seja possível ir além: o tema de Tallis escolhido por Vaughan Williams nasce de uma referência textual, o Salmo 2, que nos fala da ameaça divina àqueles que, em terra, desafiam o reino do Senhor – e do fato de que é ele o único refúgio contra a sua própria ira, um dos mistérios da crença em Deus. Se levamos tal conceito em consideração, o que ele nos diria sobre essa história de uma mãe que perde o marido e os filhos para o mar, esse mundo também misterioso e implacável com aqueles que o desafiam?
Nada no teatro é, ou deveria ser, inocente. E não é exatamente novidade que, quando justapostas, duas obras se prestam a um jogo de ressignificações, ou ao menos iluminam (ou sombreiam) uma à outra. Mas talvez haja um limite para um caminho de interpretação que esbarre na ira divina – afinal, ainda que o elemento religioso se faça presente na ópera, ele é secundário. E, de qualquer forma, a Fantasia, escolhida como prólogo musical, ganhou também representação cênica, uma introdução à narrativa da ópera, e é nela que se colocam algumas questões centrais na produção do diretor Caetano Vilela.
Vaughan Williams adaptou, em Homens ao mar, estreada em 1937 em Londres, a peça Riders to the Sea, de John Millington Synge, mantendo em geral o texto original, que data do final do século 19, adaptado aqui ou ali de acordo com a necessidade da música. Ambientadas na costa da Irlanda, ópera e peça contam a história de Maurya. Essa velha senhora perdeu o marido e seus quatro primeiros filhos para o mar. O quinto filho, Michael, está desaparecido. O mais novo, Bartley (o barítono Rafael Siano), anuncia que está de partida para Galway, onde pretende vender cavalos. Ela pede ao filho que não vá e recusa a ele sua bênção.
Momentos depois, quando, instada pelas filhas Nora (a soprano Raquel Paulin, destaque cênico e vocal do espetáculo) e Cathleen (a soprano Elisa Braga), decide procurá-lo para lhe desejar sucesso em sua jornada, é interrompida pelo que acredita ser o fantasma de Michael. Não tarda para chegar, enfim, a notícia da morte de Bartley que, após uma queda, é jogado ao mar e tragado pelas águas. Não há mais nada, diz Maurya, que o mar possa levar de mim.
Homens ao mar é mais uma história sobre a perda do que um conto sobre a morte. Não são a mesma coisa. Se a morte é um fato incontornável, o sentimento de perda é móvel e define aquilo que permanece vivo. É daí que nasce a narrativa de Synge e Vaughan Williams, da reação individual das personagens aos fatos. De um lado, há Nora e Cathleen, às voltas com os pedaços de roupa de Michael recuperados do mar, tentando esconder da mãe a verdade que eles revelam. E, de outro, está Maurya: há sofrimento, sim, dilacerante, na certeza da perda dos homens de sua vida, mas haveria também algum alívio na percepção de que, agora que o mar lhe tirou tudo, ela não terá mais, como as outras mulheres, que “descer e pegar água benta nas noites escuras depois de Samhain, e não vou ligar para como o mar está quando outras mulheres estiverem pranteando”?
No prólogo que Vilela constrói, enquanto ouvimos a Fantasia, vemos o que teria acontecido antes do início da ópera. A família feliz está em cena, os filhos brincam uns com os outros, pregam peças enquanto a mãe prepara a refeição. Reside aí, talvez, um problema estrutural. Se a ópera de Vaughan Williams não narra um caminho que vai da felicidade à infelicidade, então concentra sua ação de pouco mais de 30 minutos no universo dilacerante dos sentimentos provocados pela morte. E, se o foco, portanto, não está no fim, no desfecho linear da história (a descoberta do corpo de Michael ou a morte de Bartley), mas no modo como se reage a ele, importa pouco o seu início. E sua presença acaba, assim, por tirar força da história narrada.
Reforçar a linearidade de uma trama que, na verdade, ganha sentido nos silêncios e nos espaços não preenchidos, enfraquece as próprias soluções interessantes na configuração do cenário, no uso virtuoso da luz ou mesmo no modo como o mar e o passado reaparecem em cena, que poderiam, sem o prólogo, talvez sugerir ainda mais esse mundo interno fraturado.
Claudio Cruz esteve à frente da Orquestra do Theatro São Pedro. Funcionou bem a decisão de, na Fantasia, criar diferentes ambientes sonoros por meio da colocação de alguns músicos na plateia superior (a peça é escrita para orquestra de cordas dupla e quarteto de cordas). A colaboração entre Cruz e a Orquestra do Theatro São Pedro costuma demonstrar a que nível pode chegar a sonoridade da orquestra (efeito que outros convidados, como Ira Levin e Gabriel Rhein-Schirato também logram atingir). Em Homens ao mar, não foi diferente e o maestro soube manter viva a intensidade da escrita musical, do início ao fim.
Mas, em alguns momentos cruciais, a regência deixou pouco espaço para que as cenas se desenrolassem em todas as suas nuances. Na récita da noite de sábado, ao menos, isso se notou no monólogo (eventualmente interrompido pelas filhas) de Maurya. O texto de Synge se alterna, de maneira muito rápida, entre o verista e o poético. E, nesses momentos, pareceu apressada a leitura de Cruz, aplainando nuances que também não estiveram presentes na construção da personagem feita pela mezzo soprano Lidia Schäffer. É verdade que Maurya diz, encerrando a ópera, que “ninguém pode viver para sempre, e devemos ficar satisfeitos”.
Isso, porém, não significa que precisemos acreditar nela.
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