Em recital no Teatro Cultura Artística, Elina Garanca cantou, em seis idiomas, obras de onze compositores, com uma voz camaleônica, capaz de transmitir com veracidade e elegância a mensagem de cada um deles
O nome dela escreve-se Elina Garanca. Dizem que se pronuncia “garantcha”. Porém na última segunda-feira, dia 13, todo mundo saiu do Cultura Artística pronunciando “elegância”. Acompanhada pelo pianista Malcolm Martineau, a mezzo-soprano letã deu aquela que talvez tenha sido a mais elegante apresentação da temporada paulistana de 2025.
Garanca já mostrou as credenciais no bloco de cinco lieder de Brahms com que abriu o programa. Enquanto articulava o texto em um alemão claro e idiomático, empregava um gestual contido e concentrava-se sobretudo nas nuances de fraseado, acompanhada com carinho por Martineau.
Logo em seguida, mudou-se não apenas de língua, como de gênero musical e de campo estético: na polarização musical do século XIX, como se sabe, Berlioz encontrava-se do lado oposto da trincheira com relação a Brahms. Além disso, da canção de câmara, passamos para o teatro, e Garanca era a Margarida de A danação de Fausto, encarnando com convicção sua paixão pelo personagem de Goethe. Nada de maneirismos ou exagero: bastou um braço estendido ao longe no momento exato para indicar a ânsia causada pela ausência do amado.
Elina saiu de cena para Martineau tocar o Intermezzo Op.118 nº 2, de Brahms. Aqui como em sua intervenção da segunda metade do espetáculo (Clair de Lune, de Debussy), o pianista escolheu uma miniatura introspectiva, executada de modo despojado. Uma espécie de síntese de sua participação na noitada: fino, discreto, sem jamais querer desviar os holofotes de quem realmente os merecia.
Se até então Garanca vinha exibindo a solidez de um centro grave aveludado e de uma voz de peito segura, o colorido luminoso de sua região aguda cintilou em Io son l’umille ancella, da Adriana Lecouvreur, de Cilea. A ela seguiu-se um grupo muito bem escolhido de quatro canções de Rachmaninov – que como se sabe, era um baita pianista e, portanto, exigiu picos de virtuosidade de Martineau. A culminação foi Viessiênie vódy (Águas de Primavera), sobre versos de Fiódor Tiúttchev (1803-1873) – definido por Dostoiévski como “nosso poderoso poeta russo, um dos mais notáveis e originais continuadores da era de Púchkin”. Trata-se de uma avassaladora evocação primaveril, retratando as águas a fluírem com o degelo provocado pelo fim do inverno. Garanca proclamava: “Vesná idiot! Vesná idiot!” (A primavera vem! A primavera vem!). E, efetivamente, a segunda parte do recital desprender-se-ia das brumas e gelos do norte para abraçar o calor do Mediterrâneo.
Depois do intervalo, o legato especial de Garanca tornou um deleite ouvir as três canções de Duparc. A segunda e mais célebre, L’invitation au voyage, sobre versos de Baudelaire, traz as palavras que talvez melhor sintetizassem a noite: “Là, tout n’est qu’ordre et beauté/Luxe, calme e volupté!” (Lá, tudo não é senão ordem e beleza/Luxo, calma e volúpia).
Calma houve em Duparc. Luxo foi sua Voi lo sapete, o mamma, da Cavalleria Rusticana, de Mascagni – demonstrando que verismo não é sinônimo de mau gosto, e que é possível aplicar intensidade emocional sem berrar ou destroçar o fraseado. E a volúpia veio naquelas que talvez sejam não apenas as duas principais árias de mezzo da ópera francesa, mas de todo o repertório: Mon coeur s’ouvre à ta voix, de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns; e a indefectível Habanera, da Carmen, de Bizet. Ouvi-las na voz de Garanca é esquecer-se de que já foram tantas vezes escutadas e reconectar-se à magia primordial da sedução materializada em música.
Garanca já havia interpretado Cuando está tan hondo, de Chapí, dentre os itens do programa, e regressou à zarzuela e ao compositor no bis, com Carceleras de Louise. Após demonstrar fluência em tantos idiomas, permitiu-se um item em letão: Aizver actiņas un smaidi (Feche os olhos e sorria), de Jazeps Vitols (1863-1948). E despachou todos sorridentes e de olhos fechados para casa com Puccini: O mio babbino caro.
Saldo da segunda-feira: seis idiomas, onze compositores e uma voz camaleônica, capaz de transmitir com veracidade e elegância a mensagem de cada um deles. Há maneira melhor de começar a semana?
[A mezzo soprano Elina Garanca volta a se apresentar nesta quarta,15, no Teatro Cultura Artística; mais informações no Roteiro Musical do Site CONCERTO]
![A mezzo soprano Elina Garanca [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-Garanca_c_HolgerHage.jpg)
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