‘Yerma’ de Tenerife dá à Espanha um Villa-Lobos para teatros e cantoras de violenta ambição

por Márvio dos Anjos 20/10/2025

Ópera de Tenerife faz estreia da nova edição da ópera de Villa-Lobos em montagem assinada por Luiz Fernando Malheiro e Paco Azorín; produção será apresentada também em Manaus e Belém

TENERIFE – Conforme a plateia chega, está em cena aberta o palco do imponente Auditório de Tenerife, um edifício projetado por Santiago Calatrava que mira o Saara Ocidental coberto por uma espécie de vela náutica de pedra. O espectador logo de cara vê o nome de Yerma projetado ao fundo, sombrio e monumental, em tons de verde e ciano, enquanto um menino de peito nu e short se banha numa enorme poça d’água. Essa piscina quadrilátera ocupa quase todo o piso, à exceção de duas rampas laterais cujas descidas convergem às suas bordas. Por cerca de três horas, ouviremos a música de Villa-Lobos contando uma das histórias da trilogia rural de Federico García Lorca, crítica dos rígidos costumes do interior espanhol que o andaluz morto pelo fascismo em 1936 conhecia bem: completam esse tríptico Bodas de sangue e A casa de Bernarda Alba.

O Villa-Lobos como se cristalizou na alma brasileira – do nacionalismo paisagístico, dos cromatismos angulosos e das melodias reconhecivelmente populares – não existe aqui. Composta três anos antes de sua morte em 1959 e com apenas quatro execuções integrais largamente conhecidas desde a estreia em Santa Fe (EUA, 1971; Rio, 1983; Manaus, 2010), Yerma é nitidamente um projeto ambicioso do maior compositor brasileiro, produzindo música que seria facilmente considerada “universal” à sua época. A história de uma mulher que sente seu desejo por maternidade ser sistematicamente negado por seu marido é contada através de uma música líquida, de desenvolvimento melódico inassertivo, em que a sustentação do drama seco e realista é feita por notas quase recitadas pelo texto. No primeiro ato, estamos num ambiente semelhante ao Debussy de Pelleas et Mélisande, numa carga dramática tensionada sobre o feminino de Elektra, de Richard Strauss. 

Dificílima e muita intelectualizada na sobreposição de compassos entre os inúmeros personagens, a partitura exige o máximo de concentração dos cantores e da Orquestra Sinfônica de Tenerife, regida pelo brasileiro Luiz Fernando Malheiro, que produziu as novas correções de uma partitura ainda em estado de revelação. É possível concordar com o biógrafo finlandês de Villa, Eero Tarasti, que descreve a música de Yerma como pouco descritiva do caráter dos personagens. De fato, até o intervalo, temos a sensação de que todos passeiam indiscriminadamente pela mesma lagoa de sons. No entanto, a história que temos diante de nós é uma rotina mal vivida, em que o único conflito no mundo real são os sonhos não vividos. Não há um crime, não há uma infração, mas sim percepções de frustração, um grande vácuo de felicidade, e nisso, Villa-Lobos constrói um tremendo painel preparador para as respostas que serão dadas na parte final.

Nunca ficam muito claros os motivos pelos quais Yerma (“erma”, ou desértica, interpretada por Berna Perles, soprano) culpa o marido Juan (Alejandro Roy, tenor), um trabalhador do campo, por sua infertilidade. O texto estabelece que há uma vida sexual no casal, mas que Juan não demonstra enorme desejo por ela. O diretor cênico Paco Azorín cria uma cena no intervalo em que um Juan mais bem vestido que no primeiro ato entrega dinheiro a uma figura feminina voluptuosa, como se recorresse à prostituição, e também a um homem, sugerindo também homossexualidade. Também se depreende do texto que Juan trabalhou duramente e prosperou, a ponto de nada faltar dentro de casa. 

Ao iniciar a segunda parte, cinco anos de casamento se passaram, e nenhuma criança nasceu. A cena de Azorín recorre a tons mais rochosos, amarelados, traduzindo a aridez de Yerma, cada vez mais revoltada com sua infertilidade. A música de Villa-Lobos aqui cresce, deixa boa parte da liquidez vaga e vai ganhando um caráter mais dramático, dando a Yerma e Juan ares crescentes de ferocidade num dueto mais straussiano que mascagnino. Da orquestra vêm as sensações de uma bomba-relógio não anunciada, lenta e intensamente programada. Os espectadores não tiram mais os olhos da cena, conduzidos pela bravura de uma Perles que se despedaça em ódio pelo marido, que a acusa de má conduta. Quanto mais sente a injustiça, mais Yerma deseja engravidar. Seu maior adultério, em toda a peça, é querer trocar o marido pelo filho que ainda não teve – e que é representado por quatro meninos pré-adolescentes que passeiam pelo palco como avatares dessa criança.

Simples e poderosa, a encenação de Paco Azorín (que deverá ser vista em Manaus e Belém no próximo ano e em Madri, no Teatro de La Zarzuela, em 2027, segundo o calendário da coprodução) não obstrui a trama, mas não é exatamente eficiente ao tentar cobrir a história como uma camada crítica ao capitalismo, que seria representado por Juan, segundo o encenador. O marido workaholic se livra de Victor (Javier Castañeda, barítono, pouco expressivo na ária do segundo ato) comprando-lhe as posses e determinando como Yerma deve viver, mas a tentativa expressa de expandir isso para a exploração ambiental, ainda que cenicamente bem tratada, não chegou a ser um acréscimo significativo. O uso de uma queda d’água, jorrando por vezes sobre o ponto mais central, foi muito efetivo, ainda que tenha ganhado ares cômicos de metáfora desavergonhada, ao ser acionada quando Yerma conta que se excitou apenas uma vez na vida: ainda adolescente, num abraço que Victor lhe deu pela cintura.

Fora esse pequeno deslize, a maneira esplêndida com que Azorín serve a história compõe um clímax irretocável na cena da feitiçaria, em que Yerma se submete um ritual de benzedeiras a fim de engravidar definitivamente, em meio a uma dança com duas enormes figuras taurinas e bela escrita coral. Nesse cenário, Perles e Roy demonstram toda a entrega ao texto de Lorca, catalisando uma energia que se consuma no assassinato que Yerma comete, esfaqueando Juan após ouvir dele que, de fato, não quer ter filhos. As 1.600 pessoas no Auditorio de Tenerife, presentes à primeira apresentação espanhola dessa obra há muito órfã de seus criadores, se renderam integralmente ao resultado, aplaudindo por dez minutos e ovacionando Perles, que teve apenas quatro meses para preparar o papel.

Do ponto de vista da ópera brasileira, Yerma nasceu para ser adotada pelos teatros mais ambiciosos da Espanha, um país que já se tinha enamorado das Bachianas nº 5 de Villa-Lobos por meio de outra soprano, Victoria de Los Angeles. Agora, com Berna Perles (que se alterna com Maria Miró nas quatro récitas programadas) e esta colaboração que envolve o Festival Amazonas de Ópera e o Festival de Ópera do Theatro da Paz, de Belém (ambos participantes do Corredor Criativo da Amazônia, que assinou na semana da estreia um convênio com a Organizadao dos Estados Ibero-Americanos), a terra de Lorca descobriu uma gema de repertório para teatros ambiciosos e um papel a ser perseguido como tour de force pelas principais cantoras dramáticas do país. Em dois anos, será a vez de Madri.

[O jornalista Márvio dos Anjos viajou a convite da Ópera de Tenerife.]


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Cena da produção da ópera 'Yerma', de Villa-Lobos, na Ópera de Tenerife [Auditorio de Tenerife/Miguel Barreto]
Cena da produção da ópera 'Yerma', de Villa-Lobos, na Ópera de Tenerife [Auditorio de Tenerife/Miguel Barreto]

 

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