Na produção do Theatro São Pedro, brilhou o trio de protagonistas: o tenor Daniel Umbellino, a mezzo Luisa Francesconi e a soprano Maria Carla Pino Cury
As peculiaridades da vida musical no Brasil por vez fazem com que seja possível inovar realizando o óbvio.
Senão vejamos: com seu apelo melódico irresistível, o italiano Gioachino Rossini (1792-1868) conquista os corações de nosso público ininterruptamente há dois séculos. Suas óperas preveem orquestra dentro das dimensões e possibilidades técnicas dos grupos locais, e requerem vozes plenamente disponíveis em nosso mercado, dispensando a importação.
Assim, seria de pensar que os 39 itens rossinianos já teriam sido montados e remontados entre nós à exaustão. Contudo, não somos um país para principiantes, e um item delicioso como Le Comte Ory teve sua estreia brasileira… na semana passada, sexta-feira, dia 6, no Theatro São Pedro, em São Paulo, quase dois séculos após a primeira audição parisiense, em 1828.
Atuando na cidade natal do químico Antoine Lavoisier (1743-1794), Rossini seguia ao pé da letra a lei de conservação da matéria formulada por este último, segundo a qual na natureza nada se cria, tudo se transforma. Assim, para Le Comte Ory, ele não teve pudores em reciclar música de Il Viaggio a Reims (1825), acrescentando também coisas novas. Para contar a história de um nobre que se disfarça de freira para tentar seduzir uma condessa que espera o retorno do marido das Cruzadas, Rossini não adota a estrutura habitualmente fragmentada das óperas cômicas da época, apostando em um discurso musical contínuo, com recitativo acompanhado e números substanciosos. Dentre estes, aquele que realmente cativa é A la faveur de cette nuit, trio envolvendo o Conde Ory disfarçado de freira, seu pajem (papel masculino em voz feminina) e a Condessa Adèle, ao qual os travestimentos e entrecruzamentos de desejos conferem carga erótica sedutora.
E aí brilhou o trio de protagonistas que garantiu o êxito da récita: o tenor Daniel Umbellino, cada vez mais seguro e desenvolto, no papel-título; e Luisa Francesconi, hoje mezzo consagrada no amplo espectro de papéis de seu registro vocal, muito bem-vinda de volta ao território rossiniano no qual se projetou no início de carreira, como o pajem Isolier. A grande revelação da noite (pelo menos para mim, que nunca a tinha ouvido ao vivo) foi a Condessa Adèle da soprano paraibana Maria Carla Pino Cury. O teatro veio abaixo com seus agudos arrepiantes, mas o que me cativou especialmente foi seu sentido de linha e de estilo – além da agilidade e flexibilidade da voz. O espetáculo como um todo parece ter crescido a partir de sua entrada no palco, como se a intensidade e qualidade de Cury contagiasse a todos. Foi uma demonstração de bel canto como poucas vezes se ouve por aqui. O elenco de apoio revelou-se em geral equilibrado, com Fernanda Nagashima (Ragonde) e Janaína Lemos (Alice) servindo de divertido contraponto ao sólido vigor de Fellipe Oliveira (Tutor) e Igor Vieira (Raimbaud).
Ira Levin conduziu a partitura rossiniana com fluência e verve. Comédia é, sobretudo, ritmo e sentido do tempo dramático, e isso a encenação de Maritano teve de sobra
Revelando uma química cada vez maior com a Orquestra do Theatro São Pedro, Ira Levin conduziu a partitura rossiniana com fluência e verve. E Pablo Maritano, mais uma vez, operou o milagre de fazer o orçamento do São Pedro parecer maior do que de fato é, com soluções plasticamente convincentes e dramaturgicamente eficazes.
Se está virando moda convidar diretores surdos à música ou francamente hostis a ela, Maritano toma a sonoridade de Rossini como o GPS dos afetos que sua encenação segue. Graças a isso, todas as soluções soam orgânicas – porque brotam do fio condutor e unificador do espetáculo, que é a música. Mesmo os momentos sem texto cantado são submetidos a uma direção de atores/cantores meticulosa. E a sobreposição de elementos temporais díspares (como castelos medievais e cabines telefônicas) soa não como forçada, mas sim plenamente natural dentro da construção do mundo de fantasia que é a comédia de Rossini. Comédia é, sobretudo, ritmo e sentido do tempo dramático, e isso a encenação de Maritano teve de sobra.
Somados seus vários teatros, São Paulo teve em 2024 uma temporada operística que pode ser considerada, como um máximo de benevolência, irregular. Terminar este ano com este Le Comte Ory é auspicioso: sinaliza para um 2025 em que talvez seja possível voltar a ter vontade de ir à ópera na maior cidade da América Latina.
[A temporada de 'Le Comte Ory' segue até o dia 15 de dezembro; veja mais detalhes aqui.]
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.