A pandemia tem obrigado musicistas a repensarem sua profissão e rituais de performance, adequando-se às condições impostas pela terrível doença que assola o planeta. Uma das mais engenhosas soluções para continuar apresentando ao público uma obra-prima muito querida foi recentemente oferecida, em Lisboa, pelo maestro curitibano Ricardo Bernardes, com uma versão bastante original do Réquiem, de Mozart – que pode ser conferida na íntegra no vídeo abaixo. O concerto começa aos 4 minutos; o Réquiem, aos 32.
Quatro vozes, violoncelo solo, par de fagotes, contrabaixo e um órgão luso da primeira metade do século XVIII, em temperamento mesotônico: o “Mozart à portuguesa” de Bernardes, pela formação, poderia até parecer escrito sob encomenda para os atuais protocolos de concerto, mas, na verdade, corresponde a uma tradição lusitana secular. Ele fez a edição musicológica da obra a partir de manuscritos encontrados em Évora, e que datariam do período entre o final do século XVIII e a primeira década do XIX.
Bernardes conta que, como, nessa época, tudo em Portugal confluía para a Capela Real de Lisboa, os grupos musicais de fora da capital (incluindo Évora) tinham formações mais reduzidas. “Estabeleceu-se uma tradição de executar obras em arranjos para um ‘baixo contínuo expandido’, ou seja, órgão, fagote, violoncelo e contrabaixo”, explica. O Réquiem de Mozart também sofreu essa adaptação: Bernardes utilizou um manuscrito que instrumenta a peça para órgão, “rabecão pequeno” (violoncelo solo, com escrita extremamente virtuosística), dois fagotes e “rabecão grande” (contrabaixo). As partes vocais, segundo ele, são idênticas à da versão da obra de Franz Xaver Süssmayr (1766-1803), o discípulo de Mozart que finalizou a partitura deixada incompleta por seu professor. O regente poderia, então, ter utilizado coro e solistas; porém, dada a quantidade reduzida de instrumentos, optou, por questões de equilíbrio, apenas por um quarteto vocal, conferindo uma qualidade intimista e camerística à execução. Dentre os cantores, destaque para o tenor cearense Marcio Soares Holanda, radicado há duas décadas em solo francês, onde colabora com frequência com o grupo Les Arts Florissants, e que participou das apresentações da Capella Mediterranea e do Coro de Câmara de Namur, sob regência de Leonardo García Alarcón, na Sala São Paulo, na temporada de 2017 da Sociedade de Cultura Artística.
Realizada na última sexta-feira, dia 6, na 32a edição da Temporada de Música em São Roque (importante e tradicional festival lusitano, sediado em uma belíssima igreja do século XVI, um dos primeiros templos jesuítas do mundo), a apresentação incluiu ainda peças de compositores atuantes em Portugal no período do Réquiem: Subvenicte Sancti Dei e Trio em Sol menor, de Davide Perez (1711-1778), napolitano, prolífico compositor de óperas, mestre de capela na época de D. José I, e Lamentação de Quinta-Feira Santa, de José Joaquim dos Santos (1747-1801), discípulo de Perez e professor do mestre de capela da Sé de São Paulo André da Silva Gomes. As execuções musicais foram intercaladas com poemas de autores do passado e do presente, refletindo sobre a vida e a morte, declamados pela poeta e atriz galega Conchi da Silva e pelo poeta moçambicano Delmar Maia Gonçalves, presidente do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora.
A música ficou a cargo do Americantiga Ensemble, que Bernardes fundou ainda no Brasil, em 1995, para interpretar música portuguesa, brasileira, hispano-americana e italiana dos séculos XVII a princípios do XIX, em execuções historicamente informadas. Ao longo desses 25 anos, o Americantiga gravou seis CDs e um DVD de repertório na maioria das vezes inédito.
Seu regente e diretor musical está radicado em Lisboa desde 2010, e atua como coordenador das atividades musicais da Casa de Mateus, em Vila Real. Em 2012, no âmbito das comemorações dos 250 anos de nascimento de Marcos Portugal (1762-1830), resgatou, com as forças do Teatro Nacional de São Carlos, a ópera O Basculho da Chaminé – o final dessa perfomance pode ser assistido no vídeo abaixo:
Em 2018, em A Coruña, na Espanha, dirigiu um concerto de árias barrocas com o barítono espanhol Borja Quiza e uma velha conhecida do público brasileiro, a mezzo norte-americana Vivica Genaux – veja-a aqui nessa ocasião, cantando uma ária de Riccardo Broschi, o irmão do célebre castrato Farinelli.
Especialmente cuidadoso no tratamento das vozes, Bernardes trouxe ao Réquiem de Mozart uma leitura amadurecida e arcaizante, enfatizando a polifonia da obra, com escolhas bastante interessantes de articulação e tempo. Trata-se de uma oportunidade de ouro para descobrirmos novas belezas e escutarmos, com ouvidos renovados, uma partitura tão familiar.
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