Repertórios instigantes da Osesp são viagens sensoriais fascinantes; obras novas ganhariam se fossem incorporadas em uma programação mais variada
Nessa última semana, a Osesp apresentou um repertório bem instigante, com nada menos do que 3 (três!) estreias mundiais: duas encomendas – a obra A hora das coisas, do compositor brasileiro Paulo C. Chagas (1953), e o Concerto para violoncelo, do compositor peruano (de mãe brasileira) Jorge Villavicêncio Grossmann (1973) – e uma orquestração do Ciclo brasileiro de Heitor Villa-Lobos, originalmente escrito para piano, realizada pelo compositor holandês Richard Rijnvos. Em conjunto com uma orquestração de obra de Bach, creio que a programação de tantas composições inéditas acabou por afastar o público que, pelo menos no dia em que assisti, sexta-feira dia 10, não preencheu nem a metade dos lugares da Sala São Paulo. É uma pena, pois no geral o concerto foi muito bom!
A apresentação abriu com a Fantasia e fuga em dó menor BWV 537, de J.S. Bach (1685-1750), em transcrição para grande orquestra do compositor inglês Edward Elgar (1857-1934). O barroco, e especialmente Bach, se presta bem para transcrições em todos os estilos e vertentes, da música clássica à popular. Se não sou muito fã das versões sinfônicas feitas por compositores do romantismo, há algumas que, por sua qualidade, entram no repertório, como é o caso desta Fantasia e fuga transcrita por Elgar. Sem dúvida, a versão capta a monumentalidade da obra, ainda que a interpretação da Osesp na sexta-feira tenha sido um pouco descuidada.
Seguiu-se A hora das coisas, de Paulo C. Chagas. O compositor formou-se na USP na década de 1970. Continuou seus estudos na Europa, mudando-se depois aos Estados Unidos, onde é professor na Universidade da Califórnia. Com um amplo catálogo de obras, Chagas é reconhecido como um dos mais destacados compositores de sua geração (clique aqui para ler a entrevista que o compositor concedeu a Camila Fresca e publicada na edição corrente da Revista CONCERTO). A sua obra A hora das coisas é um concerto para tímpanos e orquestra e foi encomendada como uma homenagem aos 50 anos de Osesp da timpanista Elisabeth del Grande. É uma peça em movimento único de cerca 23 minutos.
A obra começa com um ritmado tema nos tímpanos, entrecortado por fortes acordes orquestrais. É uma introdução de grande energia e impacto. No geral, predomina ao longo da obra essa pulsação, esse vigor rítmico imposto pelos tímpanos e pelos outros instrumentos de percussão. Eventualmente passagens líricas, harmônicas, sempre muito econômicas, com notas ou motivos instrumentais repetidos – ouve-se a rica percussão, a harpa, o violão –, aliviam a pulsação rítmica, sem, contudo, deixar cair a atenção. E sempre voltam os tímpanos em novas afinações e proposições temáticas, explorando as mais diversas relações do instrumento com a orquestra.
Agora sim foi atenciosa e comprometida a execução da Osesp, acompanhando a incrível interpretação de Elisabeth, que, com grande habilidade, musicalidade e absoluto domínio de seu instrumento, demonstrou que está em plena forma – ela é mesmo uma gigante da percussão sinfônica brasileira! E o maestro Neil Thomson logrou construir a narrativa musical – sem dúvida um grande desafio dado o caráter essencialmente percussivo da obra.
Nascido no Peru, Jorge Villavicêncio Grossmann estudou em São Paulo, formando-se violinista pela Fasm. Em 1998 mudou-se para os Estados Unidos, onde seguiu a formação e desenvolve carreira. Atualmente é professor de composição na escola de música do Ithaca College, no estado de Nova York.
O seu Concerto para violoncelo foi especialmente escrito para o violoncelista Luiz Fernando Venturelli, o solista da apresentação. Com cerca de 25 minutos de duração, a obra é estruturada em três movimentos.
Já de imediato a composição nos remete a um outro universo sonoro – o de planos harmônicos na região aguda, com diferentes texturas – do qual emerge e se desenvolve a melodia do violoncelo. É uma música de atmosferas. O segundo movimento é virtuosístico, um scherzo, com uma marcante passagem em pizzicato. O último movimento retoma um clima mais onírico com um tema lírico, inicialmente no violino, depois no clarinete e finalmente no violoncelo solista. Nesse movimento, Villavicêncio Grossmann se utiliza também de um instrumento andino, as vasilhas assobiadoras, que contêm água em seu interior e produzem som quando são inclinadas. No geral, é uma obra de texturas, colorida e envolvente.
De novo a Osesp foi muito bem, conduzida com concentração por Thomson. E foi ótima a interpretação do jovem violoncelista Luiz Fernando Venturelli, de grande presença artística, técnica apurada e rica sonoridade. Luiz Fernando, de apenas 23 anos, ainda deu um bis – a Sarabanda da Suíte nº 5 de Bach –, que colocou a Sala São Paulo em levitação...
Fechando a apresentação, a Osesp fez a estreia da orquestração do Ciclo brasileiro de Heitor Villa-Lobos realizada por Richard Rijnvos. Há soluções interessantes e a obra ganhou uma nova densidade, mas fiquei com a impressão de que a versão roubou a espontaneidade e comunicação direta da virtuosa escrita do original para piano. É mesmo um desafio trabalhar com a genial e brilhante partitura de Villa-Lobos, tão orgânica com seus arroubos rítmicos e inspiração melódica.
É altamente elogiável a Osesp promover encomendas e interpretar música de nossos dias. Ouvir a criação contemporânea é sempre uma descoberta sonora especial. Quando ela é inventiva e bem escrita, como as obras de Chagas e Villavicêncio Grossmann, é uma viagem sensorial fascinante.
Com tudo isso, é uma pena a orquestra montar um programa que junte duas importantes estreias contemporâneas em um mesmo espetáculo. Perdem todos – os compositores, os solistas e especialmente o público, que nem comparece. As obras novas ganhariam se fossem incorporadas em uma programação mais variada. Chagas e Villavicêncio Grossmann têm a ver com Bartok, com Debussy, com Chopin, com Rimsky-Korsakov, com Beethoven, com Bach... Por que então separá-los? Programas com repertórios diversificados são sempre mais ricos e atraentes. E, quando incluem obras atuais, nos dão oportunidade para referenciar a criação contemporânea com o repertório histórico – e vice-versa.
Afinal, é música sem fronteiras, como quer o mote da temporada da Osesp.
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