A vida musical brasileira é tão maluca que um teatro que, há pouco mais de dois meses, corria o risco de ser fechado por tempo indeterminado, manteve-se aberto – e com um dos projetos artísticos mais consistentes do cenário. E, nessa nova orientação do Theatro São Pedro, com o objetivo de adequação e ampliação do repertório, o compositor Leos Janácek tem desenvolvido um papel fundamental, primeiro com a elogiada produção de Kátia Kabanová, no ano passado, e agora com uma nova montagem de O caso Makropulos, apresentada ao longo da última semana.
Nas primeiras décadas do século XX, Janácek desenvolveu um caminho profundamente pessoal na reinvenção da ópera. A cada uma de suas obras, estudou possibilidades distintas. Em Kátia, por exemplo, ele utiliza diferentes procedimentos para caracterizar musicalmente cada personagem, tendo como pano de fundo os ruídos do moinho ou a música angulosa que evoca o Rio Volga, tão importante para a história. No Caso Makropulos, a partitura nasce da palavra, solução ideal para um compositor que pretendia, como diz Lauro Machado Coelho em seu A Ópera Tcheca, manter o caráter de “enorme conversa” do livro de Karel Capek.
Capek chegou, por isso mesmo, a duvidar da possibilidade de seu texto ser transformado em música. “Aquele velho maluco!”, escreveu a sua filha, falando de Janácek. “Qualquer dia desses ainda vai pôr em música o editorial do jornal lá da terra dele”. Mas, ao ouvir a obra, Capek mudou de ideia, reconhecendo a capacidade do compositor de, diz ainda Machado Coelho, nunca ser monótono, “mostrando-se um mestre na arte de variar as técnicas de diálogo mediante a flutuação recitativo/arioso”.
A solução coloca desafios claros aos intérpretes. Em um ritmo vertiginoso, essas alternâncias não podem passar desapercebidas – e, no São Pedro, não passaram ao maestro Ira Levin, que mais uma vez extrai da orquestra do teatro um resultado de altíssimo nível, em uma leitura dramática eficiente, como pouco se tem visto nas óperas apresentadas em São Paulo. Para os cantores, o trabalho não é mais fácil: é preciso abrir mão da linguagem tradicional e encontrar os personagens não nos grandes momentos das árias tradicionais, mas, sim, no todo desse fluxo constante.
Eliane Coelho, como Elina Makropulos, a mulher que, tendo vivido 337 anos, provoca turbulência em um reles e desinteressante processo judicial que se arrasta sem conclusão, é a soprano que nos acostumamos a ouvir, técnica e intensa, sempre capaz de construir personagens de maneira hábil. Mauro Wrona, por sua vez, fez de seu Hauk-Sendorf um dos pontos altos da produção, com uma mistura de exagero e absurdo tão difícil de atingir. Mas Makropulos é uma ópera de conjunto: se Elina simboliza a fantasia, os demais personagens encarnam o mundo real e mesquinho das disputas e dos amores furtivos, um mundo que ganha novas cores justamente quando confrontadas por essa mulher que se diz cansada da vida. E o Dr. Kolenaty de Vinicius Atique, o Gregor de Eric Herrero, o Vitek de Giovanni Tristacci, a Krista de Luisa Francesconi, o Barão de Michel de Souza e o Janek de Daniel Umbelino, em especial, são provas da vitalidade da nova geração de cantores brasileiros.
No abarrotado escritório de advocacia do primeiro ato ou nos bastidores do teatro do segundo, papeis ou restos de figurinos e cenários representam, na visão do diretor André Heller-Lopes, um tempo que se avoluma, mas de um colorido neutro, pálido – como é pálida a ideia de uma existência que, por mais longa que seja, não possui sentido se não houver desejo de vida, como nos diz Elina. Torna-se, portanto, um contraponto interessante o palco vazio do terceiro ato, quando a chegada da morte parece devolver algum sentido de desejo à cantora – que, em troca de uma vida cansada, ganha das mãos do diretor uma morte revestida de fantasia e estupor.