Quarteto da Cidade celebra 90 anos com estreia de três obras brasileiras

Concerto no Sala do Conservatório tem peças de Marcio Giacchetta, Uaná Barreto e Leonardo Martinelli e confirma vitalidade histórica e artística do grupo

Betina Stegmann e Nelson Rios (violinos), Marcelo Jaffé (viola), Rafael Ceśario (violoncelo): o Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo chega aos 90 anos com músicos inteligentes e sensíveis, conscientes de sua História, porém não prisioneiros de uma concepção ossificada de tradição, com um diálogo inclusivo com o presente que aponta os mais auspiciosos caminhos para o futuro.

Não custa lembrar que o Quarteto foi fundado em 1935 por Mário de Andrade para fomentar a prática de música de câmara em nosso país – e basta comparar a perenidade do grupo com a precariedade das demais formações análogas que surgiram por aqui ao longo dessas décadas para constatar o acerto e o caráter visionário da decisão do autor de Macunaíma. Hoje o Quarteto toca justamente no Salão do Conservatório em que Mário lecionava. Para além de todo o simbolismo e do charme arquitetônico, a sede do grupo talvez seja acusticamente a melhor sala de música de câmara da cidade.

Se nossas grandes orquestras e teatros de ópera possuem orçamentos que os habilitam a trazerem astros internacionais de renome, o Quarteto faz uma programação muito bem pensada que aposta nos talentos locais. Sem abandonar o repertório tradicional para a formação, ela é marcada por uma visão bastante ampla da contemporaneidade, que inclui itens nos quais o Brasil não deixa a dever a nenhum lugar do mundo – a música popular em suas mais diversas vertentes.

Talvez por isso a programação do Quarteto atraia sempre um público numeroso. Pela reação calorosa e espontânea – que inclui aplaudir desembaraçadamente entre os movimentos das obras –, nota-se que não é uma plateia “de nicho”. Para quem acha que música de câmara é um gueto ainda menor dentro do gueto supostamente restrito da música clássica, uma surpresa: o quarteto “furou a bolha” e conversa com a cidade que o batiza.

Na última quinta-feira, dia 11, o grupo estreou as três obras vencedoras do concurso para comemorar seu 90º aniversário. Duas das peças foram escritas em idiomas estéticos que certamente teriam sido chancelados pelo nacionalismo de Mário de Andrade. Dos Igarapés aos Pampas – Brasil em Cordas, de Marcio Giacchetta, que abriu a apresentação, propõe uma viagem pelo território nacional, com cinco movimentos para cada uma de nossas regiões, aludindo aos gêneros populares de cada uma, e precedidos por poemas (o da região Sudeste, sintomaticamente, de Mário de Andrade) declamados com muita verve por Jaffé. Já Molduras Brasileiras Nº 3, de Uaná Barreto, firma o jovem paraibano como um dos mais talentosos representantes da música brasileira de diálogo entre o popular e o erudito – uma tradição que podemos recuar a Radamés Gnattali, e que tem hoje em André Mehmari (com o qual o Quarteto fez uma apresentação soberba em outubro) e Hercules Gomes brilhantes expoentes.

No meio deles, veio uma obra original e consistente, que foge de definições e cartilhas: Dois Irmãos, de Leonardo Martinelli, inspirado no consagrado romance homônimo do amazonense Milton Hatoum, narrando a saga de dois gêmeos desafetos de origem libanesa, tendo como de fundo o esplendor e decadência de Manaus. Traduzido para vários idiomas, Dois Irmãos virou não apenas história em quadrinhos, como uma minissérie de sucesso da TV Globo.

Martinelli selecionou cinco episódios do livro, também eles precedidos da leitura de trechos da obra – novamente recitados por Jaffé com clareza de dicção e entendimento. Encanta o profundo contraste de ambiência e do tratamento instrumental de cada um dos movimentos da peça. Sem nenhuma intenção descritiva ou pictórica, cada um deles parece decorrer menos do texto do que do subtexto – do afeto, da emoção subjacente. Difícil destacar um momento isolado em meio a esse intricado caleidoscópio de sonoridades e sensações, mas a sensualidade do início de Cachoeirinha, terceiro movimento, foi a que permaneceu na memória deste crítico durante o trajeto de ônibus de volta do concerto. Dois Irmãos é um baita quarteto.

Vale destacar ainda o comprometimento e o sentido de estilo com que o Quarteto interpretou três obras tão diferentes entre si – e a resposta calorosa do público. Sim, é possível fazer uma apresentação com três estreias mundiais e não enxotar a plateia. Basta fazer direito na hora de escolher e tocar o repertório.

Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo e os compositores
Stegmann, Rios, Martinelli, Giacchetta, Cesário, Barreto e Jaffé recebem os aplausos da plateia na Sala do Conservatório (Revista CONCERTO)

 

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