Robin Adams e Astrid Kessler brilham em concerto no qual a Osesp apresentou a ópera de Alban Berg, cem anos depois de sua estreia
É uma das imagens mais fortes da ópera de Alban Berg, extraída da peça de Georg Büchner. O mundo se torna tão escuro que podemos pegá-lo com as mãos. Podemos, precisamos. É nessa escuridão que vive Wozzeck. É nela que vê – a faixa de luz sobre a grama, o brilho vermelho que vem do oeste; o fogo do sol, a lua de sangue. E é nela que ouve – a boca que se aproxima, oscilante; o som dos violinos que nunca se calam.
Wozzeck é humilhado pelo Capitão, pelo Tambor-Mor; sofre nas mãos do Doutor e seus experimentos; é traído por Marie. Sobre ele paira o ódio e a desgraça do mundo. Mas seu desespero está na vertigem de quem contempla o abismo do humano. Wozzeck se exaspera. Vocês veem? Vocês ouvem? Mas, como poderiam? Apenas a nós, por meio da música de Berg, é permitido compartilhar com o personagem a tensão e a angústia desse tatear pela escuridão feita de sangue, um sangue que, antes de escorrer pelas águas, escorre pelos fragmentos de uma mente que não pode recorrer se não a eles para ver o que está à sua volta.
É um caminho feito de tensão, angústia, de estranhamento perante o mundo, que o barítono Robin Adams percorreu em leitura repleta de violência e, ainda assim, tocante no concerto-cênico em que a Osesp apresentou a ópera de Berg, na última terça-feira, na Sala São Paulo. Uma interpretação favorecida pela direção cênica de André Heller-Lopes, de efeitos e sugestões breves e precisas, com poucos elementos de luz e cena, permitindo à música se colocar como protagonista.
A interpretação de Robin Adams entra para a galeria de grandes momentos vividos no palco da Sala São Paulo. Foi marcante também o Capitão do tenor Thomas Ebenstein, vigoroso em sua própria loucura, neste bicho tão particular que é a voz wagneriana a serviço de um papel histriônico. Mas o elenco reunido pela Osesp para a produção teve desempenho bastante desigual na noite de estreia, dia 2. Não se escutava o Doutor do baixo Markus Hollop; pouco se ouvia o Tambor-Mor do barítono Robert Watson, ou o Andres de Jason Bridges. E isso tirou a força de cenas importantes, como os encontros do Doutor com Wozzeck e com o Capitão, ou o embate do Tambor-Mor com o protagonista. O elenco contou ainda com Luisa Francesconi, Savio Sperandio, Michel de Souza e Jabez Lima, destaque em sua breve participação como o Bobo.
E havia, claro, a Marie da soprano Astrid Kessler, em controle de uma personagem que une desejo, paixão, piedade e maternidade em uma tentativa de reagir a mundo sufocante. “Vamos, meu menino! É isso que as pessoas querem! Você é apenas um pobre filho de prostituta e dá tanta alegria à sua mãe com essa sua cara desonesta!” Palavras horríveis, cantadas com delicadeza desconcertante.
Foi um dos grandes momentos do espetáculo. Assim como os contrastes que o maestro Thierry Fischer soube extrair de seus músicos ao longo da noite: a cena do assassinato, com o ainda enlouquecedor, um século depois, si único; a transição para a cena da taverna; o intermezzo que introduz a cena final.
Mas Fischer não é um maestro de meros efeitos e, mais do que momentos pontuais, o que se sobressai de sua leitura é uma construção mais ampla, carregando o ouvinte com intensidade, construindo com ele cada cena, até o desfecho.
As crianças ridicularizam o filho de Wozzeck e Marie. “Sua mãe está morta.” E ela apenas brinca com seu cavalinho.
“Hopp, hopp! Hopp, hopp! Hopp, hopp!”
Na noite de terça, foi, como deve ser, uma das mais terríveis cenas de toda a história da ópera.
[A temporada de Wozzeck segue com mais duas récitas, nos dias 4 e 6; veja mais detalhes aqui.]
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