'Ritos de perpassagem': uma experiência de audição

por João Luiz Sampaio 28/09/2019

Em um texto sobre uma nova obra, o primeiro e o último parágrafo se escrevem praticamente sozinhos.

"Há algo de muito revigorante em, na chegada ao teatro de ópera, perceber-se envolvido ainda na rua por um coro silencioso - ou quase. De preto, os cantores caminham entre as pessoas, soprando nos ouvidos nem sempre atentos senhas que evocam nomes de grandes compositores do gênero. Mozart, Puccini, Monteverdi. São a história de um gênero, uma história que não se esquece, mas se abandona por um instante, à medida em que, já no saguão do teatro, os músicos e cantores entoam um texto que fala do início da criação."

E então:

"A estreia de uma nova obra é sempre desafiadora - e o desafio torna a experiência de escuta daquilo que se ouve pela primeira vez, assim como de todo repertório passado, uma busca pelo novo. Porque, de alguma forma, a importância de todo um gênero se constrói a partir de sua continuação. Alguém certa vez disse que, sem a música nova, não há sentido em Beethoven. Talvez não seja um exagero. E um teatro de ópera entender-se como algo vivo, dinâmico, é ponto de partida fundamental na construção de uma nova relação com o público."

Entre os dois parágrafos há, porém, as quase duas horas de Ritos de perpassagem, ópera de Flo Menezes encomendada pelo Theatro São Pedro e estreada na última sexta-feira, dia 27, a serem decifradas. O termo talvez não seja esse. Pois, em sua essência, a obra trata de algo muito próximo de todos nós. É um recorte de tempo e de vida - cujo objetivo, no entanto, é inserir a existência e a música em um fluxo contínuo, nunca interrompido.

Um primeiro ponto de parada é o livro Ritos de passagem, que o antropólogo Arnold van Gennep lançou em 1909. O autor defende a ideia de que a trajetória do ser humano está pautada por passagens de uma posição para outra. São passagens ininterruptas, que evocam a necessidade do indivíduo de transformar constantemente sua relação com o mundo e, por que não, consigo próprio. Como diz Pitágoras: "Os homens nunca estão em repouso e sua vida é uma perpétua mudança"; ou Johannes Kepler: "A essência do movimento consiste não em ser, mas em vir a ser". 

Essa ideia relativiza noções como início, meio e fim. E então, no momento em que chegamos ao teatro, o espetáculo já parece ter começado. A imagem do coro caminhando pela rua, sem parecer ter uma direção definida, sugere justamente algo que sempre esteve ali. A ópera não está prestes a começar; também não podemos dizer que já começou. Ela simplesmente está. Existe. Perpassa uma experiência que já está sendo vivida. A entrada na plateia, nesse sentido, não é um início, apenas a chegada a um rito, o rito do concerto, que, a partir das ideias de Van Gennep, sugere a ideia de uma transformação ou transmutação.

Cena de 'Ritos de perpassagem', de Flo Menezes [Divulgação/Heloísa Bortz]
Cena de 'Ritos de perpassagem', de Flo Menezes [Divulgação/Heloísa Bortz]

Na busca pela transformação, é preciso entender ou tornar visível aquilo que nos define. Flo Menezes escolhe referências precisas. A maior delas é Pitágoras. Neutrinos são partículas que viajam quase à velocidade da luz e atravessam, aos bilhões, todos os corpos. Pois para Menezes, Pitágoras seria "um neutrino da história da humanidade", viajando lentamente e interagindo com tudo o que conhecemos, física, música, cosmologia, política, ética, religião. 

Na ciência ou na filosofia, essas são noções que relativizam percepções a respeito do tempo e do espaço, e questionam naturalmente o sentido de linearidade, o que é fundamental na maneira como se constrói a narrativa de Ritos de perpassagem. Se há uma sequência de quadros, ela é estabelecida e relativizada ao mesmo tempo pela própria maneira como se constrói o libreto, uma sequência de fragmentos de textos de Pitágoras e outros autores caros ao compositor, como o próprio Van Gennep, Freud, Marx, Kepler, Fílon de Alexandria, Haroldo de Campos, Pascal, Ovídio, Platão, Empédocles, Einstein ou Pirandello. 

É um tecido criado com exatidão, mas ainda assim fragmentado. Pois, na Parte 21, Menezes vai nos lembrar Roland Barthes e a ideia de que "todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, com formas mais ou menos reconhecíveis; tecido novo de citações passadas; campo geral de fórmulas anônimas". Em Ritos de perpassagem, portanto, essa ideia se une à própria concepção de um fluxo contínuo de criação e de implosão de limites que definem os ritos de passagem do ser humano. 

E aqui se tem uma percepção fundamental a respeito da obra: uma relação simbiótica entre forma (ou questionamento da forma) e conteúdo, que define a expressão teatral e musical. E isso vale para o texto tanto quanto para a música. O uso da voz, por exemplo, flutua em diferentes direções: do ruído à fala, do lirismo irônico ao grito, do vibrato quase incômodo ao tom que relembra a pretensa certeza do ministrante de um ato religioso. É mais do que isso, porém: em alguns momentos, o texto ganha um duplo por meio da manipulação eletrônica; em outros, passeia de um personagem a outro, de um idioma a outro, como se a sugerir que as ideias que evoca não podem ser reduzidas a uma pessoa ou fonte, são neutrinos que passeiam quase sem forma pelo tempo da existência.

Para Pitágoras, afinal, a fonte do discurso era menos importante que a mensagem que ele carrega - e os efeitos acusmáticos, em que não se sabe a origem do som, se prestam muito bem a essa ideia, assim como, na escrita para os instrumentos, a noção de todo (a orquestra) e de indivíduo (os instrumentistas) parecem bem definidas mas, ao mesmo tempo, esfumaçam-se em um mundo de transitoriedade (anote-se aqui a  regência segura do maestro Ricardo Bologna  à frente dos músicos da Orquestra Sinfônica do Theatro São Pedro e do Piap, Grupo de Percussão da Unesp).

O componente visual também se relaciona com todas essas ideias. A enorme tela sobre o fosso, que cobre o palco, assim como o cubo de luz que invade a plateia logo nos primeiros momentos do espetáculo, materializam o que é imaterial (como a música é parte do inaudível). A homenagem a Gilberto Mendes, com o jogo de futebol sobre o palco, também dá forma ao que é, essencialmente, um jogo de significados, desembocando na necessidade de revolução contra o sistema capitalista - afinal, a obra traz duas epígrafes, uma do Coletivo Centelha, que relaciona a liberdade individual à libertação das amarras do poder do Estado, e outra de Barthes, "Eu atravesso rapidamente a noite reacionária", entendendo o poder reacionário como impedimento para o novo, pedra que se coloca sobre a invenção - de si e do mundo. Mas, aqui, um parênteses: talvez o momento menos orgânico da partitura seja aquele em que a ópera reflete sobre si mesma e sobre a importância de se apostar no novo na criação, ideia que a própria existência do espetáculo já parece contemplar. Fecha parênteses.

Flo Menezes deixou claro, em entrevistas, que não se limitou a criar texto e música, anotando também outros aspectos da obra, o que torna difícil, sem a partitura em mãos, saber o que é determinação do autor e o que é criação do diretor cênico Marcelo Gama. Mas com certeza entra em sua conta a preparação gestual dos cantores do Coro Contemporâneo de Campinas ou dos Neue Vocalsolisten, assim como é preciso anotar o virtuosismo do trabalho de luz de Mirella Brandi ou da criação de vídeos de Raimo Benedetti. Luzes e vídeos que se apagam no momento em que as portas para a rua se abrem e coro e músicos voltam àquele espaço indefinido do início da noite, um fim que evoca o começo. 

Apenas para nos relembrar, uma vez mais, que eles não existem. 

Cena de 'Ritos de perpassagem', de Flo Menezes [Divulgação/Heloísa Bortz]
Cena de 'Ritos de perpassagem', de Flo Menezes [Divulgação/Heloísa Bortz]

Ainda haverá récitas de “Ritos de perpassagem” hoje, dia 28 (20h), e amanhã, dia 29 (17h). Clique aqui e veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

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