Qualquer um que ouça a integral em curso das sinfonias de Gustav Mahler se dá conta da importância de projetos consistentes como o da Filarmônica de Minas Gerais
No final de um ano em que sofreu um absurdo ataque que pôs em perigo sua sobrevivência, a Filarmônica de Minas Gerais e seu regente Fabio Mechetti têm muito a comemorar. Sua reação vigorosa e o apoio não só da comunidade musical e de seu público, mas da opinião pública do país, transformaram em letra morta a ameaça de simplesmente perder sua casa, a moderníssima Sala Minas Gerais, em Belo Horizonte.
Qualquer um que ouça sua integral em curso das sinfonias de Gustav Mahler – disponíveis nas plataformas de streaming – se dá conta da importância de projetos consistentes como o desta orquestra, que só tem paralelo no “case” Osesp concebido e consolidado por John Neschling. Sem pressa, com fina sabedoria e expertise construídas numa sólida experiência internacional, Mechetti atinge o ápice de qualidade nas performances, registradas em concertos ao vivo na Sala Minas Gerais, destas nove sinfonias.
Ainda impactado com a audição das primeiras cinco sinfonias já disponíveis no streaming (1, 2, 3, 5 e 6), tentei compreender as razões da capacidade destas obras monumentais de despertar em nós, em pleno século 21, uma empatia tão forte.
Uma delas pode ser a ocorrência de duas efemérides: em 2010 (150 anos de seu nascimento) e em 2011 (centenário de sua morte). As datas redondas provocaram uma avalanche no planeta, invadido por suas sinfonias, em concertos e gravações. Um detalhe: um número bem mais amplo de orquestras mundo afora arriscou-se em gravar integrais Mahler. E isso não se deve apenas às facilidades tecnológicas em relação às próprias gravações de concertos ao vivo. Claro, não existem mais os custos altíssimos de estúdios e produção industrial dos “CDs”, que Luca Raele divertidamente chama de “fósseis”. Mas além da facilidade tecnológica – o mundo digital democratiza o acesso dos músicos e orquestras às gravações –, o motivo mais importante deste “boom” é a sensação de liberdade. Não há mais teto para as orquestras, elas podem transformar em realidade seus mais acalentados sonhos musicais.
Num bem nutrido artigo de 1976, Pierre Boulez explica bem as razões que levaram Mahler a dizer que seu tempo iria chegar, no momento em que, próximo da morte em 1911, sentia que seu prestígio imenso como maestro aumentava na medida inversa em que sua imagem como compositor decrescia e parecia datada diante da explosão da Segunda Escola de Viena: “Os modernos sentiram que tinham ido além de Mahler e o relegaram a um romantismo ultrapassado, totalmente desprovido de interesse contemporâneo, que eles viam com certa pena (...) A qualidade excessiva e abundante dessa música fin-de-siècle ia contra a corrente dos compositores modernos que estavam cada vez mais interessados em economia. A extensão imprudente do tempo, o excedente de instrumentos, os sentimentos e gestos sobrecarregados (...) Qual poderia ser o valor de uma música na qual a relação da ideia com a forma se perde nos pântanos da expressividade? Parece que enfrentamos o fim de um mundo que adoece por sua riqueza, engasga com sua abundância. O melhor e o pior que pode acontecer é a paixão, uma apoplexia sentimental. Adeus a esse romantismo obeso e degenerado!”, escreve. E em seguida pergunta-se: “Adeus? Se as obras teimam em sobreviver, elas não podem ser banidas. Você as dispensa? De repente? Elas ainda permanecem”.
Ficam para outro momento algumas reflexões sobre as semelhanças entre Boulez e Mahler, dublês de compositores e maestros. Mas o fato é que a música de Mahler tem poderes mágicos. As sinfonias caminham como romances, já dizia sobre elas Theodor Adorno. Querem contar uma história. Assumem o olhar ingênuo da criança, desejam desesperadamente abraçar o mundo. “Ultrajantemente moderno” e “inocentemente ultrapassado” foram duas das acusações mais frequentes à sua obra enquanto viveu.
Não seria exagerado afirmar que ele representa para as orquestras nos últimos setenta anos (a partir de seu “redescobrimento” por Leonard Bernstein) o mesmo que as nove sinfonias de Beethoven representaram para o século XIX: o maior desafio a que podiam se propor.
Por tudo isso, é preciso aplaudir esta integral em curso da Filarmônica de Minas Gerais. É uma leitura brasileira, de um clássico universal.
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Comentários
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Esse é o enorme risco que…
Esse é o enorme risco que corremos quando chegam ao poder políticos como Zema, Tarcísio, Castro, Bolsonaro e outros! Essa gente é tosca, grotesca, não tem nenhum compromisso com a cultura, arte, educação, ciência etc! Para eles o que importa é a ignorância, a brutalidade e coisas assemelhadas!