Uma conversa com Maíra Ferreira e Priscila Bomfim

por Camila Fresca 16/10/2023

Maíra Ferreira e Priscila Bomfim são duas jovens regentes brasileiras das mais importantes da atualidade. Maíra é titular do Coral Paulistano, no Theatro Municipal de São Paulo (TMSP), e Priscila é regente colaboradora do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (TMRJ). Ambas desenvolvem projetos paralelos e cumprem uma intensa agenda como regentes convidadas.

Priscila esteve em São Paulo regendo uma montagem de Cinderela, de Pauline Viardot, no Theatro São Pedro. Num domingo, antes de uma das récitas, as duas maestras se reuniram para um bate-papo no café do teatro, a convite do Site CONCERTO. A conversa girou em torno do momento atual da carreira de cada uma e da visibilidade das mulheres na música. O Simpósio Mulheres Regentes, liderado pela maestra Ligia Amadio e que acabara de realizar sua quarta edição em Buenos Aires (e do qual ambas participaram), também foi assunto da conversa. 

Como jornalista, eu enxergo vocês duas em um grande momento da carreira. Vocês também sentem isso?
Priscila – Concordo com você, do ponto de vista pessoal me enxergo num momento de muita realização. Passei por essa fase que todo mundo passa de muito estudo, muitos conselhos, ir a cursos no Brasil e no exterior para que eu pudesse fazer uma coisa com embasamento técnico, artístico, musical. Depois de um período em que me detive muito na técnica, na observação, agora cheguei nesse momento de usar tudo isso como aliado da minha essência. Estou muito feliz porque me dei conta de que eu tenho uma bagagem importante. Mesmo que não seja da minha carreira toda como regente, mas a minha carreira musical importa. Eu tenho usado também tudo o que aprendi como pianista, correpetidora de ópera, ao trabalhar num grande teatro de ópera que é o TMRJ, ter conhecido outros grupos fora do Brasil. Então estou realmente neste momento de muita realização. 
Maíra – Eu fico feliz em saber, e acho que também estou. No meu caso, tem uma questão pessoal muito forte que tem a ver com a perda da Naomi [Munakata] e uma segurança de fazer as coisas. E essa segurança pessoal, que foi um processo meu dos últimos três anos, tem a ver com a autonomia que eu ganhei no TMSP, principalmente ao fazer a programação do Paulistano. Acho que eles também confiam em mim e demonstraram isso, e é muito importante que as pessoas confiem na gente. 
Priscila – Concordo. 
Maíra – E aí recebo convites, você faz uma coisa e uma coisa leva a outra. Falei muito sobre isso lá no Simpósio Mulheres Regentes, onde diziam: no começo, parece que são sempre as mesmas pessoas que estão fazendo as coisas. Eu acho que estou num momento – e você também – em que as pessoas chamam a gente para fazer as coisas e eu acho que agora vai vir um outro momento em que outras mulheres também farão.
Priscila – Como foi dito no Simpósio: quando a gente faz um trabalho, a gente não está representado só a nós mesmas, mas também outras mulheres. Nesse momento, eu sinto que é isso e fico feliz, não por servir só de inspiração, como já foi há um tempo, mas hoje trata-se de representatividade de uma classe, de um grupo de mulheres.

Quando estamos num bom momento, costumamos justificar as coisas pelo nosso esforço, nossa competência – o que é absolutamente verdade. Mas, se estamos inseridos num ambiente adverso, que impõe barreiras, podemos ser geniais e a coisa não acontece. O esforço de vocês tem sido reconhecido e estamos num momento favorável à pauta das mulheres na música. Fazendo retrospecto de cinco ou dez anos, vocês acham que as coisas estão muito diferentes agora?
Priscila – É difícil falar porque talvez seja um olhar muito pessoal: eu considero que esse movimento de dar visibilidade ao trabalho das mulheres aconteceu quase paralelamente com a minha experiência na regência. Então, acho que, no meu caso, apesar de eu ter uma carreira já grande construída como pianista, na regência é difícil separar. Agora, não resta dúvidas de que anos atrás havia poucas mulheres que eu pudesse eleger como minha inspiração, minha referência. Não que não existissem, é que hoje elas estão muito mais visíveis. Há cinco ou sete anos, quando comecei a reger, eu não as conhecia. 

É isso, vocês não surgiram hoje nem ontem. Mas nesse momento estão tendo muito mais visibilidade. Quanta gente não está conhecendo vocês agora, por conta disso? 
Priscila – É verdade.
Maíra – Eu vejo o pós-pandemia como um momento em que isso aconteceu, em que as pessoas perceberam que não tinha mais como não dar espaço, e talvez tenha começado de uma forma pontual, quase como se falassem: “Olha que grande oportunidade estamos dando para as mulheres”, com a minha geração. Com a geração da Naomi, da Ligia [Amadio] pessoas tão destacadas, talvez elas já fossem vistas com mais naturalidade. Hoje eu acho que isso se rompeu e se busca essas mulheres para estarem nos lugares. Eu percebo sim uma mudança, nos últimos três ou quatro anos, no próprio lugar que eu trabalho, na própria forma como a programação é pensada – não falando só de maestras e de instrumentistas, mas de compositoras também.
Priscila – Mas você não acha que (é uma pergunta, é não uma afirmação) esse período da pandemia foi marcante nesse sentido, mas também do autoconhecimento e do auto crescimento? Participei virtualmente do Simpósio e ouvi, quase unanimemente, as maestras dizerem que enxergam uma mudança no cenário de oportunidades para a participação de mulheres regentes, as instituições realmente convidando maestras para assumirem cargos importantes de direção artística. Mas Maíra esteve lá presencialmente...
Maíra – Foi muito legal, foi muito bom conhecer outras maestras da América Latina. A Argentina tem uma lei de cotas, que começa com a música popular e agora estão querendo implementar na música de concerto. Qualquer evento de música tem que ter no mínimo 30% de mulheres, se for um festival de rock tem que ter 30% de instrumentistas. No início, os caras iam na TV falar: Ah, mas não tem mulher baterista. Então a gente entrou nessa discussão, que também é uma discussão que estamos tendo no TMSP: Mas não tem mulheres... Eu digo: Vamos procurar, porque tem sim. Da mesma forma que dizem: Ah, mas não tem cantores, solistas negros. Claro que tem, se não estão vendo então vamos procurar. Aí entra-se nesse lugar de sempre as mesmas pessoas fazendo as coisas...

Acho curioso esse tipo de “acusação”, pois é como se no nosso meio musical não víssemos sempre as mesmas figuras masculinas. Quando se trata do topo ,a gente pode elencar uma mesma meia dúzia. Então, é curioso cobrar isso quando se chega na luta das mulheres. 
Maíra – A gente está numa posição privilegiada, Priscila trabalha num grande teatro, eu trabalho num grande teatro, que são os dois principais teatros de ópera do país, e a gente também faz coisas aqui no São Pedro. São os três principais teatros, mas tem muita gente fazendo orquestra comunitária, orquestra jovem. No Simpósio, tinha um monte de mulheres jovens, de 22 anos, recém-formadas, contando que tinham começado uma orquestra. Porque a mulher – também isso se falou –  é a empreendedora; além da vida familiar a gente é tudo: a gente escreve o projeto, apresenta o projeto, rege o projeto. Eu falei sobre naturalizar a presença de mulheres. Hoje a gente não fala mais lá no teatro [TMSP] “concerto de mulheres compositoras latino-americanas”; mulher regente, mulher violista. Ninguém fala “homem violista”, então também não vamos falar das mulheres. Eu acho que a gente está bem melhor do que estava. 
Priscila – Eu vejo esse momento como um momento de transição, do que era e do que pode vir a ser, até se chegar num equilíbrio maior do que já temos. E você [Maíra] falou de regentes jovens, eu me lembro que os primeiros cursos de regência que eu fiz, quando estudei na Rússia, era só eu de mulher; no Chile era só eu de mulher; quando eu fiz o curso na Itália era só eu de mulher. Isso alguns anos atrás. Hoje, nos cursos de regência, você vê mais mulheres, se não às vezes até a maioria de mulheres na regência orquestral, e isso digamos num período de talvez sete anos. Então é um ponto interessante. 

Maíra Ferreira e Priscila Bomfim durante conversa com o Site CONCERTO [Camila Fresca]
Maíra Ferreira e Priscila Bomfim durante conversa com o Site CONCERTO [Camila Fresca]

Na primeira edição do Simpósio, em 2016, as regentes falaram muito sobre como era difícil conseguir o respeito dos músicos da orquestra. Como foi isso para vocês e como é hoje?
Priscila – Eu acho que o processo de preparação do primeiro ensaio é desgastante para qualquer um. É no primeiro ensaio que existe uma expectativa de qualquer grupo sobre qual é o conceito musical da pessoa que vai fazer o ensaio. Eu sinto isso com o instrumentista, seja homem, seja mulher. Músico de orquestra espera aqueles famosos cinco minutos para fazer um raio-X do maestro. Acho que isso é um desafio comum a homens e mulheres, e a experiência traz a você a postura ideal de se relacionar com a orquestra ou coro, faz parte das habilidades que o maestro tem que ter. E cada vez mais eu acredito nisso: quando você tem um conceito musical firme e pré-estabelecido – não é o certo ou errado, é você estar plenamente convicta daquilo – você não deixa espaço para outras coisas acontecerem.
Maíra – Nossa, você acha mesmo que o fato de ser mulher não interfere? 
Priscila – Não, eu não disse isso. 
Maíra – Você acha que por você ser uma mulher que está bem resolvida e no controle de tudo, o tratamento não é diferente? 
Priscila – O que se espera é diferente, a expectativa é diferente, sem dúvida. Por causa do momento que a gente vive. Talvez daqui a cinco anos... Há orquestras que já me convidaram pela segunda vez e foi muito interessante voltar, porque eu não sinto mais essa expectativa diferente; agora já me conhecem como a regente Priscila Bomfim. Mas da primeira vez, claro que há uma expectativa diferente, ainda mais se é uma orquestra que não tem o hábito de trabalhar com mulheres. 
Maíra – Você acha que daqui dez anos vai mudar? Será “uma pessoa” que vai reger, independente do sexo?
Priscila – Eu tenho esperança que sim. Não posso afirmar que sim, mas eu tenho esperança que sim. Qual a sua opinião?
Maíra – Eu acho também. Primeiro, acho que o mundo está bem diferente hoje, as pessoas são mais cuidadosas. Então, mesmo que pensem, elas demonstram menos. Eu trabalho na Escola Municipal de Música, e sei que você também trabalha com jovens; tudo é encarado com a maior naturalidade. Inclusive as mulheres, as instrumentistas, acham o máximo ver uma mulher no pódio, nem importa se você é boa ou ruim [risos], porque você é mulher e isso as toca num outro lugar. Eu senti isso quando regi aqui a Orquestra Jovem do Theatro São Pedro. Não importava o que eu iria fazer, só de ser uma mulher e estar ali no pódio, para elas era uma simbologia tão grande. E aí fizemos um trabalho super bacana. Eu concordo com tudo que você falou, mas eu acho que não basta estar no controle, tem que parecer estar no controle; eu acho que se espera mais de uma de mulher, então isso faz com que a gente, talvez, se a régua for 10, a gente se prepare até 15 para estar pronta para qualquer situação. Pelo que eu vejo de homens subindo no pódio e conduzindo ensaios pela primeira vez, e o que você faz, o que a Mariana Menezes faz, o que a Natália Larangeira faz, o nível de preparo é muito alto. 
Priscila – É como se a mulher não pudesse cometer os mesmos erros que porventura os homens possam. Talvez daqui alguns anos a gente não tenha que fazer esse esforço para provar as coisas. Eu prefiro trabalhar sem considerar esse tipo de pressão, porque senão a gente enlouquece. Procuro pensar que a pressão é musical, artística, e não em cima de um gênero. Isso não quer dizer que eu não sinta que ela existe – é nítido esse “teste” para cima de nós. Eu é que prefiro não focar nisso.

Priscila, como está sendo o trabalho aqui no São Pedro com a Cinderela?
Priscila – É uma experiência privilegiada por diversos aspectos: primeiro, por poder voltar pela terceira vez ao São Pedro, tenho muita gratidão pela confiança; porque é uma ópera composta por uma mulher, regida por uma mulher, dirigida cenicamente por uma mulher, que teve orquestração feita por uma mulher e é protagonizada por uma mulher. Então é uma reunião do elemento feminino e um elenco que a gente escolheu com muito cuidado, muito carinho, para que fosse representativo não só na categoria de gênero, mas também racial, vocal; que houvesse uma representatividade em diversas áreas.

Maíra, você também falou que sua experiência aqui no São Pedro foi muito boa, trabalhando com a orquestra jovem.
Maíra – Eu também tive o privilégio de ter uma equipe de mulheres, cenógrafa, diretora, iluminadora, visagismo, e isso me passou bastante segurança. Foi minha primeira ópera no fosso – eu regi Blue Monday [de Gershwin], mas foi uma ópera fora da caixa [projeto do TMSP de apresentar óperas em espaços alternativos]. Eu tinha muitas preocupações e até inseguranças e fiquei muito feliz em ser com o pessoal da academia. Eu sinto o trabalho de regente muito próximo ao meu trabalho de professora, para além de conduzir. Fui super bem recebida. 
Priscila – Você gostou de reger ópera?
Maíra – Eu gostei muito. Ao mesmo tempo, é desesperador a primeira récita, porque as pessoas resolvem fazer várias coisas que não foram combinadas. Eu brinco que a gente fica como o guarda de trânsito, você realmente tem que estar no controle, ter uma regência muito ativa com a orquestra. Todo mundo estava pela primeira vez fazendo a ópera, tanto a orquestra quanto eu e os cantores. 
Priscila – Eu acho que a ópera amplia o olhar. Uma vez me disseram que para reger ópera você tem que saber reger música sinfônica. OK, mas eu digo que quem rege ópera adquire habilidades únicas para reger repertório sinfônico e qualquer repertório, porque tem que ter um controle absoluto, como você disse, entre o que acontece no palco o que acontece na orquestra, então o fosso te dá grandes habilidades. 

Gostaria de terminar perguntando a vocês sobre projetos futuros, tanto coisas que estão agendadas como sonhos, desejos. 
Priscila – Falando especificamente desse trabalho que eu exerço junto a uma orquestra de meninas, uma orquestra sinfônica de meninas no Rio de Janeiro [a Orquestra Sinfônica Juvenil Chiquinha Gonzaga]. Quando eu olho para elas, eu desejo que elas já vivam uma outra realidade daqui a alguns anos e é isso que a gente planta nelas: uma autoconfiança, uma segurança do seu valor no meio artístico, no meio instrumental. Para que elas se espelhem em grandes mulheres e vivam realmente daqui alguns anos uma outra realidade. 
Maíra – Eu tenho muitas coisas para acontecer com o Coral Paulistano. Tenho bastante flerte com a música contemporânea e o Paulistano tem um papel importante nisso, então eu desejo que o Coral Paulistano se firme nesse lugar, mas que a gente também faça mais músicas de mulheres, de jovens compositores em geral. E eu quero também um mundo mais justo para as minhas alunas, para os meus alunos; fazer música com essa turma daqui a uns anos. E, finalmente, gostaria que houvesse menos oportunidades super valorizadas e mais naturalidade para todas nós exercermos nossa atividade profissional. 

Muito obrigada!

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