Não tem jeito: é preciso experimentar

por João Luiz Sampaio 24/10/2024

Ausência de uma encomenda ou de um novo título brasileiro na programação é um passo atrás notável do Theatro Municipal de São Paulo

O Teatro Municipal de São Paulo anunciou sua temporada lírica com sete óperas, divididas em seis espetáculos. A abertura será com O guarani, na concepção de Ailton Krenak apresentada em 2023. Em seguida, Don Giovanni, de Mozart; Le Villi, de Puccini, em dobradinha com Friedenstag, de Strauss; Porgy and Bess, de Gershwin; Macbeth, de Verdi; e Les Indes Galantes, de Rameau. E nenhuma ópera contemporânea, fruto ou não de encomenda feita pelo teatro.

Em 2022, o Municipal fez as três primeiras encomendas de sua história: Navalha na carne, de Leonardo Martinelli; Homens de Papel, de Elodie Bouny; e O Café, de Felipe Senna. Um ano depois, foi a vez de Isolda.Tristão, de Clarice Assad. Na atual temporada, não houve encomenda de obra, mas a estreia latino-americana de Eu, vulcânica, de Malin Bang, em dobradinha com O Castelo do Barba-Azul, de Bartók. A curva descendente parece clara.

Não é novidade que o Municipal esteja buscando uma identidade artística a partir da releitura do repertório. O guarani talvez seja o principal exemplo, mas não é o único. Houve o Nabucco de Cristiane Jatahy, para ficar no exemplo mais recente. Mas a criação de novas obras é um desafio de outra natureza, pela escolha de temas, de artistas e, em especial, porque a criação exige um alargamento da forma de produção.

Em junho foi realizada em Los Angeles, nos Estados Unidos, o Fórum Mundial da Ópera, com a participação de teatros, artistas e gestores de todo o mundo. A quantidade de temas abordados deve ter sido imensa. Mas um deles aparece em diferentes relatos. Em artigo no Site CONCERTO, a diretora executiva do Festival Amazonas de Ópera Flavia Furtado escreveu que uma das percepções compartilhadas pelos convidados é a de que “honrar a herança da ópera é também honrar os teatros que ousaram, em tempos passados, dar chance a novos compositores e a temas difíceis para a época”.

Editorial da edição de agosto da revista Opera News trouxe outros elementos para a discussão. A compositora Missy Mazzoli afirmou que o papel de compositores de ópera ampliou-se, argumento que pareceu confirmado pelo que o autor chama de enorme presença de compositores e libretistas nos painéis do fórum, chamando atenção também para o que considera um “grande número de óperas de câmara sendo criadas nos Estados Unidos”.

A boa notícia, por lá, nos EUA, foi a de que o mercado de ópera reencontrou algum equilíbrio após o período catastrófico da pandemia. Mas a má notícia é o diagnóstico de que o pico de criatividade que o isolamento exigiu, assim como seus desdobramentos nos anos seguintes, já começou a perder força, com teatros “escorregando de volta ao confortável”. Yuval Sharon, da Ópera de Dallas, chamou o cenário de “O império contra-ataca”.

No caso brasileiro, o principal legado da pandemia foi o investimento em novas óperas. Na temporada 2022, foram estreadas catorze óperas escritas recentemente por autores brasileiros, o que  significa que quase metade do repertório apresentado no Brasil foi composta de obras novas – dez delas frutos de encomendas de teatros e instituições musicais. 

Mais do que a quantidade, que, claro, pode variar, o que parecia se desenhar era a criação de uma rotina, dentro dos teatros, associada à produção contemporânea. Nesse sentido, a ausência de uma encomenda ou de um novo título brasileiro já pronto, seja ele inédito ou apresentado recentemente em outro teatro, é um passo atrás notável do Municipal de São Paulo.

Não há nada de errado em investir na releitura do repertório, e buscar ampliar os limites nesse sentido, como vem fazendo o teatro. Mas depender apenas disso é, em conceito, voltar ao confortável e ao que o mundo da ópera tem feito desde a primeira metade do século XX. É pouco para o Municipal de São Paulo.

Perguntas e respostas

Em sua coluna publicada na edição de outubro da Revista CONCERTO, o historiador da arte Jorge Coli oferece sua leitura sobre o editorial da revista Opera News. Sua análise é um excelente panorama, que pensa a cena operística à luz de questões como a relação com a arte do passado ou a ausência de uma política cultural que de fato entenda a cultura como central em uma sociedade. E pinta um quadro no qual há hoje uma série de perguntas sem resposta que, ainda assim, precisam continuar a ser feitas.

Coli tem toda razão. A pandemia tornou evidente a necessidade de discutir temas como diversidade, representatividade, inserção no mundo contemporâneo e mesmo preconceito e misoginia, que também estão presentes na cena da ópera apesar dos argumentos comovidos daqueles que acreditam que a aura de excepcionalidade, mística quase, da arte a protege de questões que assolam a sociedade como um todo. E muitas dessas perguntas não têm mesmo respostas fáceis ou então exigem que se vá além do impulso mais óbvio se queremos que sejam abordadas de maneira de fato profunda e com potencial transformador.

Mas algumas perguntas já têm sim respostas. E a reflexão, cujas proporções podem ser assustadoras, sobre o todo da cena operística não pode servir como desculpa para que aspectos específicos dela sejam ignorados. Esperar que tudo se resolva em uma equação mágica (o que o texto de Coli não faz) não é só ingenuidade – pode ser também uma forma de manter tudo como está. Não há alternativa: as mudanças precisam acontecer em tempo real, enquanto o jogo está sendo jogado.

E, nesse sentido, não há dúvidas de que o investimento em novas óperas é um caminho que precisa ser percorrido – e aqui não se trata de evocar apenas o caso do Municipal de São Paulo. Primeiro, porque nos relembra, para além da releitura do repertório, que o gênero segue vivo. Mas também, e talvez mais importante, porque a prática de encomendar e levar ao palco uma obra nova sugere uma série de questões que dizem respeito a quão de fato os teatros estão atentos aos estímulos – e perguntas – do mundo à nossa volta.

Novas óperas colocam desafios desde o início, com a escolha de tema, dos autores e autoras envolvidos, dos profissionais chamados a participar, sejam cantores, diretores, cenógrafos, iluminadores, figurinistas, técnicos. Não é um processo banal e exige dos criadores e dos intérpretes uma postura reflexiva tanto quanto ativa. O mesmo vale para o público. E para a crítica: ler uma ópera contemporânea exige abertura na relação com o gênero e seus significados, ou se cai no modorrento hábito de julgar o novo a partir do antigo, em comparações inúteis e repletas de clichês.

Dá trabalho para todo mundo, mas todo mundo ganha. E ganharia ainda mais se o processo de criação buscasse também novos formatos. Um teatro de ópera não é um prédio ou uma direção artística apenas, é a reunião de um universo rico de profissionais – músicos, técnicos, gestores etc – que carregam histórias diversas, trajetos de vida que corporificam facetas e realidades (sociais, econômicas, políticas, de gênero, raça) distintas. Se é verdade que o olhar para a diversidade é um elemento fundamental de nossa época, é fato também que ela não pode ser imposta, pois a chance de se tornar mero simulacro é risco grande demais a correr perante a importância da questão. Ora, em cada profissional, teatros vivenciam essa diversidade. Basta estar disposto a ouvi-la. Não para desfazer individualidades tão importantes dentro de qualquer processo de criação mas, sim, para que cada um possa fazer valer sua experiência não pela imposição, mas pelo compartilhamento de saberes específicos.

A criação de novas obras, e o processo que ela carrega, é um campo em que essa oportunidade se coloca de maneira muito rica, pois exige uma reflexão sobre o próprio processo de produção – o tempo e o espaço que se dá à preparação de um novo título, o que ilumina o quanto esse é um processo prioritário, por exemplo, ou as relações de poder que pautam a vida interna de um teatro.

Não é um processo fácil, banal e pode naturalmente levar a muitas outras perguntas. Mas a resposta primeira já existe. É preciso experimentar.

Cena da ópera 'Isolda. Tristão', de Clarice Assad, estreada em 2023 [Divulgação]
Cena da ópera 'Isolda. Tristão', de Clarice Assad, estreada em 2023 [Divulgação]

 

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