Libretista da ópera ‘Olga’, de Jorge Antunes, o poeta Gerson Valle faz o relato pessoal da estreia da obra em Gdansk, na Polônia, no Teatro de Ópera Báltico, dirigido pelo maestro brasileiro José Maria Florêncio
Como libretista da ópera Olga, conversei muito com seu compositor, Jorge Antunes, sobre a forma como iríamos abordar um argumento tão significativo para o Brasil e o mundo de sua época. Concordamos que os maiores elementos operísticos são o lirismo e a dramaticidade do enredo, onde os dados políticos aumentam-lhe o dinamismo, sendo visto com o devido distanciamento, não cabendo mais proselitismos como no tempo em que se passa a ação, mas não ignorando a vitalidade das concepções para os personagens. Portanto, a marca estética é a mais importante, e, para seu acompanhamento por um público atual, é necessário não repetir chavões operísticos acadêmicos de formalismos musicais que envelheceram, nem linguagens modernistas ou puramente experimentais que nunca atingiram o grande público da ópera. Mas, entrelaçar todos os elementos de que dispomos do passado e presente, numa construção teatral meio realista, meio expressionista ou de qualquer outra escola que demonstrou resultado de entendimento e emoção para o público. Para começar, a ação envolve culturalmente o Brasil e o país está presente exatamente nessa sua mescla de construção mosaica, sem esquecer o popularesco, como é mestiça a nossa formação. Tal superposição pediu a construção de um espetáculo multimídia, talvez realizando o ideal nunca atingido antes plenamente da “gesamtkunstwerk” (obra de arte integral) preconizada por Richard Wagner.
Tivemos a satisfação de comprovar o bom resultado de nosso avanço na estética do velho mundo operístico quando, no Theatro Municipal de São Paulo, em 2006, em cinco récitas lotadas, o público chorou e riu acompanhando o espetáculo junto à realização musical, como numa peça ou filme. E os aplausos foram incessantes. O mesmo êxito ocorreu nas récitas no Teatro Nacional de Brasília, em 2013. E agora se internacionaliza com a sua encenação na abertura da temporada lírica do Teatro de Ópera Báltico, em Gdansk, Polônia, nos dias 11, 12 e 13 de outubro de 2019, com 8 récitas até março de 2020. O grande elenco é polonês, e a orquestra notavelmente comandada pelo brasileiro José Maria Florêncio, que já levara o Teatro Báltico, sob sua direção, a ser considerado pela TV BBC de Londres entre as melhores casas de ópera da Europa. A cenografia de Romuald Wisza-Pokojaki conduz num único plano simbólico as várias mudanças marcadas no libreto, combinada à inteligente iluminação, chegando a formar quadros coletivos de expressivo significado. O esforço dos cantores/atores em expressarem e cantarem, dentro da intensidade dramática, e usando, nas partes cantadas, uma língua que desconhecem – o português (com legendas em polonês) –, sendo os diálogos sem canto traduzidos para o polonês, dá ao espetáculo uma dimensão verdadeiramente teatral, não se podendo esquecer da vitalidade das interpretações de: Anna Miklajczyk, alternando nas récitas com Katarzyna Wistrzny, como Olga Benario; Jacek Laszkowski, como Luís Carlos Prestes; Marcin Bronikowski e Mariusz Godlewski, como Filinto Müller; Daniel Borowski e Remingiusz Lokowski como Arthur Ewert; Katarina Norbosad no sacrificoso papel de Carmen Ghioldi; e mais todos, todos, impecavelmente...
A cidade de Gdansk (Danzig em alemão) já foi cenário de importantes eventos de mudança histórica (como a invasão nazista de 1939, que obrigou o mundo a posicionar-se ante a perversidade hitlerista, ou o movimento Solidariedade, que iniciou a ação objetiva contra os resquícios stalinistas). O seu teatro de ópera, com esta representativa apresentação, aponta extremismos da década de 1930, fazendo-nos refletir sobre as ameaças de retornos...
A emoção do espetáculo fica por conta da inspiração em dois idealistas de um mundo dividido. A carta com que a judia Olga Benario se despede do pai de sua filha, Luís Carlos Prestes, nascida na prisão alemã sob o nazismo, apela, em qualquer tempo, por um humanismo necessário. Um famoso jurista da Antiga Roma definiu o Direito como a defesa do justo e do bom. Disto todos se esquecem, colocando as ideologias de defesa de classes e privilégios ou de atitudes burocráticas. Independentemente da classificação política de esquerda ou de direita, Olga expressa o ideal maior de sua vida: “Lutei pelo justo e pelo bom. Lutei pelo melhor do mundo.”
Inspirados em tal ideal, eu, como libretista, e Jorge Antunes, como compositor, demos a forma da ópera Olga, trazendo de nossos conhecimentos artísticos o melhor representativo de muitas correntes, de forma a inaugurar uma representação mais abrangente dos sentimentos e ideais da vida. Todos os públicos a que a mensagem foi levada, agiram positivamente. É de desejar que tal exemplo se propague, unindo mais todas as pessoas, num tempo tão ou mais dividido do que o da vida dos heróis do espetáculo.
Veja outras fotos da ópera Olga [Divulgação - K. Mystkowski/KFP/Archiwum Opery Bałtyckiej w Gdańsku]