Borba Gato e Karajan

por João Marcos Coelho 01/08/2021

No último dia 24 de julho, uma quarta-feira, o Kronen Zeitung, Jornal da Coroa, de Salzburgo, noticiou que a Associação de Vítimas do Campo de Concentração de Salzburgo, que funcionou a todo vapor durante o terceiro Reich, convidou a população da cidade natal de Mozart para a cerimônia simbólica de renomeação da Praça. Há treze ruas e praças em Salzburgo que ostentam nomes de notórios nazistas. A convocação foi feita logo depois que o prefeito anunciou que vai manter os nomes atuais nos chamados logradouros públicos da cidade.

A associação simbolicamente renomeou a praça Karajan como praça VdA Salzburg. O nome é o do campo de concentração onde morreram muitos habitantes da cidade.

O célebre maestro Herbert von Karajan (1908-1989) foi mesmo nazista com carteirinha e tudo. Ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, ele e outros nazistas depuseram diante do tribunal de desnazificação instaurado pelo Comando Aliado. Ele e outros parças – incluindo os compositores Werner Egk (1901-1983), Gottfried von Einem (1918-1996) e Carl Orff (1895-1982), entre os mais conhecidos – montaram uma fake news dando conta de que eles eram resistentes ao nazismo, com conexões numa – hoje sabe-se inexistente – célula austríaca de resistência. 

É muito difícil separar as coisas em casos como estes. Aos poucos, nas décadas seguintes, as fake news foram sendo desmascaradas. Basta ler o livro Composers in the Nazi Era (2000), em que Michael H. Kater faz retratos precisos e minuciosos de como Egk, Orff e Pfitzner, entre outros, se comportaram no período 1933-1945. Quanto a Karajan, perdi totalmente o encanto de ouvi-lo e/ou assisti-lo depois do documentário de 52 minutos dirigido por Georg Wübbolt, “Maestro for the Screen” (2016). Assista ao menos os últimos 10 minutos, preciosos, no YouTube:

 

Karajan, um grande maestro, como também Karl Böhm, igualmente nazista de carteirinha, julgava-se imortal. A cena final é de meter medo. Ele era do tipo “Quando eu morrer... se eu morrer”. Sentado no sofá, muito doente, envelhecido, bem próximo da morte, que veio de fato em 1989, ele encara a câmera e diz com convicção: “Estou convencido de que as pessoas têm várias vidas. Asseguro que voltarei. Goethe disse acertadamente: ‘Se minha vida interior tem tanto a dar e meu corpo se recusa a servi-la, a natureza tem que me oferecer um novo corpo’. Concordo integralmente com Goethe”.

Este assunto é interminável e não se esgota nestas poucas linhas. No sábado, dia 24 de julho, um grupo de pessoas colocou pneus em torno da estátua do Borba Gato, no bairro paulistano de Santo Amaro, e iniciou um incêndio. Os bombeiros chegaram logo e “salvaram” a estátua, que é recente, da década de 1960, e tem seu valor artístico contestado. O ato queria chamar a atenção – replicando movimentos planetários dos últimos anos em muitos outros países – para o fato de que o bandeirante Borba Gato escravizou milhares de índios em suas andanças garimpando pedras preciosas. Segundo o antropólogo Darcy Ribeiro (em O povo brasileiro), Borba Gato é um dos responsáveis por caçar e vender mais de 300 mil índios para os senhores de engenho do Nordeste.

Historiadores já se levantaram para dizer que passou da hora de se ressignificar este tipo de monumento. A onda é forte. Isso me faz lembrar os cortes no Sítio do Pica-pau Amarelo, um dos maiores sucessos de Monteiro Lobato, com vistas a “limpar” seus livros de expressões racistas.

Será que os três episódios se equivalem? A aplicação indiscriminada desta ressignificação cheira ao Ministério da Verdade de Orwell, reescrevendo a todo momento o passado, de acordo com a verdade do presente.
Estava batucando estas linhas quando li as atrocidades que a Secretaria de Cultura fez na mecânica da Lei Rouanet. Agora a arte e a cultura brasileira passam a depender do humor do ex-ator de Malhação. 

Paro por aqui para não os importunar com tantas chorumelas.

Vida que segue, como fecha o Ricardo Kotscho todas as suas colunas no UOL.

Leia também
Notícias Jhonatas Carmo, de 28 anos, vence Prêmio Eleazar de Carvalho
Notícias Prepare-se: dez concertos para ver ao vivo ou na internet
Notícias Filme sobre a maestrina Antonia Brico chega ao streaming
Colunistas Anna Maria Kieffer: uma incansável criadora, por Camila Fresca
Notícias Cursos CLÁSSICOS On-line lançam programação de agosto
Colunistas Pierre Boulez e a vanguarda institucionalizada, por Jorge Coli

Detalhe da estátua de Borba Gato (Revista CONCERTO)
Detalhe da estátua de Borba Gato (Revista CONCERTO)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

Link permanente

Prezado João Marcos Coelho e editores da Revista Concerto,
conforme e-mail anteriormente enviado, resumo de novo a minha opinião:
1. É admirável o conhecimento de João Marcos Coelho na MÚSICA;
2. Quanto aos citados Karl Bohm e Herbert von Karajan, foram ótimos MAESTROS.
3. Cada um na sua área e na sua especialidade, dentro da ARTE; não é interessante enveredar pelos tortuosos caminhos da intolerância, principalmente na "nossa" Revista dedicada às músicas e às notícias de Concertos.
4. Outro exemplo, nesta má onda do que João Marcos chamou "ressignificação": um dirigente, ao prefaciar lançamento de CD de Villa-Lobos, mencionou que o compositor não se posicionou 'de acordo' na era de Getúlio. Oras bolas!!
- Logicamente, esse dirigente foi bastante criticado, por misturar as coisas.
Vamos em frente!

- Pedro -

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.