Callas, Gobbi e um ‘Rigoletto’ aterrorizante

por João Luiz Sampaio 02/12/2023

Conhecer as gravações de Maria Callas é sempre um momento de descoberta para o amante de ópera. Há Callas, há as outras, grandes também, enormes. Mas a soprano se impõe pelas interpretações, pela técnica e pelo imaginário – ela não encarnou personagens, ela foi as mulheres que interpretou, dizem tantos textos, implodindo os limites entre vida e obra.

Não deixa de ser um paradoxo que uma cantora tão pessoal em suas escolhas de papéis, e no modo como os recriou, com a inteligência e sensibilidade com que percebia a relação entre texto e música, tenha entrado para a história como a essência quase metafísica da voz e de seus mistérios. Ou talvez não. Estrella Bohadana propõe a Antonio Blundi (de O imaginário da ópera) que canto é desejo. E, se o desejo não deseja nada a não ser desejar, assim também seria o canto: sem alvo, algo que a nada visa, a não ser o próprio cantar. E se a vida é desejo... Esqueçam aquele papo de paradoxo.

No constante aprendizado que Callas nos oferece à medida em que a conhecemos, é bem provável que a aula magna seja a Tosca gravada em 1953 com Giuseppe Di Stefano, Tito Gobbi e Victor de Sabata no Scala de Milão. Soma-se a ela o registro em vídeo, e foram tão poucos, do segundo ato da ópera de Puccini gravado no Covent Garden. São dois momentos diferentes, que se aproximam na mesma convicção a respeito da força teatral de suas atuações.

Mas há a primeira vez e ela é sempre importante. E a minha foi na adolescência, com Rigoletto, um LP descoberto nas coisas guardadas do avô que não conheci, e cuja relação com a ópera nunca soube exatamente qual era. Os nomes que mais tarde seriam tão próximos, Di Stefano, Gobbi, Tulio Serafin, apareciam ali pela primeira vez. E também Giuseppe Verdi.

Na famosa carta que enviou a Marzari, empresário do Teatro La Fenice, sobre exigências de alterações feitas pela censura com relação a Rigoletto, Verdi definiu, intencionalmente ou não, seu credo artístico. A escolha de um protagonista marginalizado, um bobo da corte, permitia a ele explorar uma nova dimensão de teatro musical – uma dimensão na qual texto e música se uniriam de tal forma na caracterização do mundo interior dos personagens que qualquer mudança na história significaria jogar fora e começar de novo a partitura.

Toda a cena II da ópera é uma conquista impressionante. O dueto entre Rigoletto e o assassino Sparafucile; o monólogo em que reflete sobre sua condição; o dueto com a filha Gilda, permeado por amor e medo; o encontro furtivo entre a moça e o duque disfarçado de estudante; a ária com sabor de juventude; o retorno do pai; o sequestro; a maldição. A riqueza de episódios e sentimentos ganha sempre música e estilo de canto próprios, que nos falam daquilo que veremos no palco antes mesmo que as cenas se desenvolvam.

Tal diversidade é a forma que Verdi encontra de retratar o humano em suas múltiplas facetas. E interpretar suas óperas é, portanto, estar atento às transformações que seus personagens – nem todos, nem sempre – experimentam ao longo de suas histórias. Gobbi foi mestre nessa busca, Serafin também. E Di Stefano? Seu canto aberto, direto, nos deixa sempre em dúvida sobre se as tentativas de nuances que Verdi dá ao papel são autênticas ou meros simulacros – e fica difícil pensar em melhor caracterização do duque.

Em seu retrato de Gilda, o humano nasce não da transformação necessariamente, mas de um momento anterior, o da mistura de emoções

Callas. Está lá, de forma contundente, a transformação da jovem que quer descobrir o mundo –  e o faz por meio da crença no amor – na mulher que, enganada e violentada, escolhe a morte como forma de manter algum resquício de ilusão de um sentimento já desconstruído (pulsão de morte, pulsão de vida, vai entender a falta de interesse de Freud pela ópera).

Mas há uma cor trágica que perpassa toda a interpretação. O sentido de tragédia, é claro, se faz dos elementos individuais e do caminho dos personagens ao longo da trama. Mas ele está lá, a todo instante, em cada inflexão. Ansiedade? Hesitação? Medo? Vergonha? Paixão? Desejo? É como se Callas desse a Gilda, desde o primeiro momento, uma dimensão tão ampla que defini-la de forma exata, momento após momento da trama, fosse reduzi-la. O humano nasce não da transformação necessariamente, mas de um momento anterior, o da mistura de emoções.

E, então, a cena final. Rigoletto contratou Sparafucille para matar o duque, Gilda coloca-se no seu lugar, é golpeada, seu corpo está no saco entregue a Rigoletto, com a orientação para que o jogue imediatamente no rio. Mas o bobo da corte quer ver o corpo sem vida do antigo patrão. E o pai descobre a filha à beira da morte, em alguma instância provocada por ele mesmo.

A Gilda de Callas é de uma contenção dilacerante em sua dor. Intensa, nunca forte. Sem arroubos, sem soluços. Quando diz que ao menos poderá conhecer enfim a mãe morta, é como se texto e música se unissem pela forma como ela os separa. Não há redenção. Serafin faz o tempo parar na dor profunda daquele momento. Gobbi pede a ela que não o deixe, mas já não há esperança em sua voz. Seu “È morta” é breve, quase falado, não carrega surpresa. É aterrorizante.

A memória é ficção; a experiência subjetiva, um processo dinâmico e de construção contínua; o presente molda a experiência passada. O que aquele menino de 13 anos enxergou na gravação do Rigoletto eu não me lembro. Mas o tempo faz pensar que ali, de alguma forma, ficou claro que ópera era acima de tudo teatro. E que nela cabia todo um mundo. Com isso, Callas provavelmente concordaria.

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Rigoletto, Callas, Gobbi
 

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