Não houve cantora lírica tão incontornável no século XX quanto Maria Callas. Como o tenor italiano Enrico Caruso e o baixo russo Fiódor Chaliápin (porém em escala maior, devido ao alcance e desenvolvimento ainda mais abrangente dos meios de comunicação de massa em seu tempo), ela transcendeu as fronteiras da ópera e tornou-se um dos maiores ícones culturais de seu tempo. Não se conta a história do século XX sem a personagem de Callas.
A essa tríade, poderíamos talvez adicionar Luciano Pavarotti, e dentre as muitas dessemelhanças entre ambos, uma chama especialmente a atenção: diferentemente do tenor italiano, Callas jamais fez concessões no repertório. Não há itens crossover ou duetos com astros do pop em sua discografia. Só tem ópera.
Claro que muito contribuíram para essa fama os anos em que ela frequentou o jet set e, consequentemente, colocou-se sob os holofotes da mídia por motivos que nada tinham a ver com sua carreira artística. Não vale a pena aqui questionar episódios de sua vida pessoal como a perda abrupta de peso, seus relacionamentos amorosos ou uma suposta negligência da carreira em prol dos assuntos do coração – quem somos nós para, a posteriori, decidirmos como e onde ela deveria ter buscado a felicidade? Mas vale sublinhar que muitas das celebridades instantâneas daquela época tiveram notoriedade efêmera, e rapidamente deslizaram para a obscuridade após o esgotamento de seus quinze minutos warholianos de fama. Se Callas segue relevante em seu centenário, é por causa do caráter único de sua arte.
Por que gerações que nunca a viram no palco seguem fascinadas por atuações realizadas em estúdio? Uma resposta é que Callas atuava com a voz, e beneficiava-se do microfone para salientar as mais diversas inflexões do texto, tanto no aspecto verbal quanto no musical.
Foi uma carreira intensa – e, talvez por causa disso, de uma brevidade tantalizante. Os relatos de época falam de suas habilidades extraordinárias de atriz, captadas nos relativamente poucos registros de vídeo que restam, ou ainda em sua hierática Medéia de Pier Paolo Pasolini – o filme em que ela não canta. (Aliás, quantas atrizes cativaram diretores tão diferentes entre si e de nível tão elevado quanto Pasolini, Luchino Visconti e Franco Zeffirelli?). Isso sem falar nas gravações ao vivo, em que, apesar da precária qualidade da captação do áudio, e de imperfeições por vezes flagrantes de execução, sente-se a eletricidade de performance que deixava o público mesmerizado.
Mas por que gerações que nunca a viram no palco seguem fascinadas por atuações realizadas em estúdio? Uma resposta é que Callas atuava com a voz, e beneficiava-se do microfone para salientar as mais diversas inflexões do texto, tanto no aspecto verbal quanto no musical.
Outra, e mais importante, era a qualidade única de sua voz. Às vezes só um ataque basta para reconhecermos a qualidade personalíssima do som de Callas. Em vez de uniformizados, seus registros eram abruptamente contrastantes, e ela jogava com essa paleta distinta para colorir suas interpretações. A voz de peito, especialmente impressionante, servia para lançar trevas na caracterização dos papéis dramáticos que pareciam ser sua especialidade.
E daí vem uma das muitas ironias quando o assunto é Callas. Sabe-se que o conceito de beleza é elástico e relativo. Porém, dentre os especialistas, não faltará quem recuse aplicar o adjetivo bela à voz de Callas – especialmente se essa noção de belo for apolínea. E parece inegável que cantar papéis excessivamente pesados (incluindo Wagner – em italiano) no começo da carreira cobrou seu preço nos anos de maturidade, fatigando a voz e roubando-lhe gradativamente a firmeza, com um alargamento do vibrato, nos últimos anos, para além dos limites do aceitável.
De qualquer maneira, ter uma qualidade única é convite à imitação. E um dos maiores exemplos da marca que Callas imprimiu no canto lírico é o número de sopranos acusadas, justa ou injustamente, de emularem seu estilo. Vieram Elena Souliotis, Lucia Aliberti, Sylvia Sass, Angela Gheorghiou, Cheryl Studer e outras, para testemunhar que, para o bem ou para o mal, Callas efetivamente fez escola.
Sabe-se que os maiores e mais relevantes intérpretes são os mais importantes críticos de arte. Curadores do museu do imaginário da humanidade, suas escolhas alteram a recepção das obras de arte a que se dedicam, e modificam decisivamente o cânone de sua área de atuação. Nesse sentido, a contribuição talvez mais decisiva de Callas ao repertório operístico tenha sido sua dedicação ao bel canto. Norma foi um de seus papéis mais emblemáticos, e vários títulos de Bellini, Donizetti e Rossini entraram em circulação internacional em nossa época devido ao carinho que Callas a ele dispensou.
Ironicamente, no terreno do bel canto, talvez Callas tenha sido vítima de seu próprio sucesso. Colocando de outra forma: o interesse por esse repertório cresceu tanto da década de 1950 para cá que acarretou em muita pesquisa, e modificações abruptas das tradições interpretativas. O que faz com que, independentemente da atuação da protagonista, muitas das escolhas estéticas em geral das gravações destas óperas por Callas soem hoje datadas.
Seu Puccini parece resistir melhor ao teste do tempo. E, pelo menos para este articulista, o disco de ilha deserta continua sendo sua Tosca, na indizível química com Giuseppe di Stefano e Tito Gobbi, galvanizados pela regência de Victor de Sabata. Se você ainda não ouviu, tem a minha inveja: pois ainda tem pela frente a descoberta de uma das experiências mais impactantes que a audição de uma gravação pode proporcionar.
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