Em ‘Tár’, filme sobre maestra autoritária, uma reflexão feita de caricaturas

por João Luiz Sampaio 02/02/2023

Filme de Todd Field estrelado por Cate Blanchett não é um documentário sobre o meio musical, mas despertou reações fortes de artistas

E eis que a música clássica voltou ao cinema, em um candidato ao Oscar de melhor filme, com uma protagonista como favorita ao prêmio de melhor atriz. Tár, de Todd Field, chegou na última quinta aos cinemas brasileiros. Nele, Cate Blanchett vive Lydia Tár, artista de exceção, nova diretora da Filarmônica de Berlim.

Acontece que ela é também uma figura autoritária, no trato com os músicos ou na relação com aqueles que vivem à sua volta, o que resulta em uma tragédia pessoal pela qual ela será duramente cobrada.

O longa provocou reações diferentes e igualmente fortes. Marin Alsop se disse ofendida como mulher, artista e lésbica. “Ter a oportunidade de retratar uma mulher em um posto de liderança e fazer dela uma abusadora, isso me entristeceu”, disse em entrevista à imprensa inglesa. “Todas as mulheres e todas as feministas deveriam se incomodar com esse tipo de representação porque não se trata realmente de mulheres regentes, não é? É sobre mulheres como líderes em nossa sociedade.”

Alsop foi além. “São tantos os homens, reais e documentados, que Lydya Tár emula com seu comportamento problemático e cruel, mas o filme coloca uma mulher no papel, dando a ela todos os atributos desses homens”, disse. “É um filme anti-mulher. Supor que mulheres vão se comportar de forma idêntica aos homens ou ficar histéricas, loucas, insanas é perpetuar algo que já vimos no cinema tantas vezes adiante.”

Cate Blanchett saiu em defesa do filme. Afirmou que o longa é sobre o poder – e o poder não têm gênero. “O que Todd Field e eu queríamos fazer era propor uma conversa. Não há respostas certas ou erradas em obras de arte. Não é um filme sobre regência, e acho que as circunstâncias do personagem são totalmente fictícias. Olhei para tantos maestros diferentes, mas também olhei para romancistas, artistas visuais e músicos de todos os tipos. É um filme muito não literal.”

 

No The Guardian, outra maestra, a inglesa Alice Farnham, viu o filme sobre outro prisma. Para ela, o longa aborda “questões atemporais como abuso, fragilidade e a ilusão do poder”. E, ao ter como protagonista uma regente, ajuda a normalizar a presença feminina à frente de orquestras. “Obrigada, Cate Blanchett”, diz o artigo.

Kathleen Stock, professora de filosofia na Universidade de Sussex, considerou a ideia absurda. “Assistir Tár e deixar o cinema pensando que a causa das maestras foi ajudada de maneira significativa é como pensar que Cinderela ajuda a melhorar a imagem de madrastas”, escreveu.

Não que ela concorde com Alsop. Na verdade, ela acredita que a postura das artistas parte do mesmo lugar. “Para as duas, Tár deve ser avaliado a partir de como serve à representação positiva de regentes mulheres. Por mais ridículo que seja pensar que, em algum universo alternativo, o público em geral pode ter ido aos cinemas para ver propaganda a favor ou contra maestras, as respostas de Alsop e Farnham estão em sintonia com o zeitgeist: há uma tendência de considerar o foco ficcional de uma obra em um personagem específico como tendo implicações na vida real para um grupo mais amplo e, em seguida, de definir a partir daí o valor dessa obra.”

Como dizem Blanchett e Field, Tár é um filme, e não um documentário sobre o mundo da música clássica. Mas os roteiristas parecem ter feito bem o dever de casa. Não apenas pelas brincadeiras com personagens reais que o amante da música vai provavelmente reconhecer. Mas também ao abordar questões como a separação entre obra e seu criador, a cultura do cancelamento, o autoritarismo, o assédio, o racismo. 

Nesse sentido, há uma cena representativa e que tem sido muito debatida, quando Lydia Tár dá uma masterclass de regência na Juilliard School. Um jovem regente, Max, diz a ela ter um problema com a música de Bach, cuja postura com relação às mulheres ele considera problemática.

Ela tenta mostrar no piano a importância do compositor. São as perguntas que ele faz, e não as respostas, o que de fato importa. Em cada peça, em cada momento, há um questionamento. Mas não adianta. A visão de Max sobre a vida de Bach é o suficiente para que ele não apenas não consiga enxergar o valor de sua obra como também se recuse a tocá-la.

É minimamente concebível o cancelamento de Bach? Não. Mas é disso realmente que estamos falando? Quando o mundo musical se propõe uma discussão sobre abertura em termos de repertório e um olhar para questões contemporâneas –identidade, racismo estrutural e institucional, misoginia, igualdade e equidade, entre tantas outras – ele está propondo o banimento dos chamados mestres do passado? Max é uma caricatura. E tem sido comum neste debate tomar o caricato pelo todo. 

Mas não parece ser o caso de Todd Field. Na mesma cena, após Max deixar a aula ofendido, Lydia Tár faz um breve discurso sobre o que é o artista. Um regente deve sublimar a si próprio, seu ego e, por que não dizer, sua identidade. Deve se postar diante do público e de Deus e ter a coragem de obliterar a si próprio. 

Obliterar: deixar de existir. Sublimar: passagem direta de uma substância do estado sólido para o estado gasoso; ou então, para a psicologia, o mecanismo que transforma um desejo inconsciente em impulsos que são aceitos, padronizados e bem-vistos pela sociedade.

Palavras importam. E as que Lydia Tár diz sugerem que, para interpretar, o intérprete deve se anular. Ele é assim reduzido à mera técnica. Ou então assume uma postura mística (gasosa?) de uma entidade capaz de falar, sem edições ou acréscimos, a língua da música criada pelos compositores. Sacerdotes de uma religião para poucos, acima de todos os demais meros mortais. Caricato, não? Bem, pouco importa de que lado do espectro ideológico se está, qualquer um pode jogar esse jogo. 

Entre duas caricaturas, o filme sugere que melhor é olhar para o que há entre elas. Não traz respostas fáceis, que o debate público sobre a música clássica procura com tanta avidez. Não está tudo certo, não está tudo errado. Mas é preciso duvidar, questionar, investigar. Quem sabe não deveríamos ouvir mais a música de Bach. 

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Cate Blanchett em cena do filme 'Tár' [DIVULGAÇÃO]
Cate Blanchett em cena do filme 'Tár' [DIVULGAÇÃO]

 

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