Representatividade ainda é desafio para a Osesp

por Camila Fresca 07/01/2023

Em setembro, quando preparava a matéria sobre a temporada 2023 da Osesp para a Revista CONCERTO, uma questão me chamou a atenção: a despeito de todas as discussões sobre a desvantagem histórica da representação feminina na área – seja como intérpretes, compositoras ou regentes – a temporada era escandalosamente não representativa.

É evidente que a Osesp tem ciência dos movimentos em curso, e que se importa em passar uma imagem condizente aos tempos que vivemos. Basta lembrar dos concertos intitulados “Mulheres na música” do ano passado (e que critiquei num artigo anterior por sua falsa inclusão) ou ainda o fato de terem criado um quinteto de cordas formado exclusivamente por instrumentistas mulheres da orquestra. São, no entanto, iniciativas tênues que mascaram números que, quando colocados na ponta do lápis, chocam. 

Com relação às solistas convidadas, a atual temporada tem apenas seis instrumentistas do sexo feminino: a pianista Isata Kaneh-Mason acompanha seu irmão, o violoncelista Sheku Kaneh-Mason, num recital em abril; flautista da Osesp, Claudia Nascimento é uma das solistas do primeiro programa que a orquestra faz em maio; a violoncelista Inbal Segev faz a estreia do concerto da compositora Anna Clyne em setembro; no mesmo mês, a violoncelista Marina Martins participa de dois recitais, um deles ao lado do Quinteto Osesp; timpanista da casa, Elizabeth del Grande será homenageada por seus 50 anos de Osesp em novembro; e a musicista Cynthia Millar toca ondas martenot no programa dos dias 30 de novembro, 1 e 2 de dezembro.

É verdade que esta enumeração não leva em conta as cantoras convidadas para a temporada, que são em número de 13. Mas nesse caso temos uma questão que é estabelecida a priori pelo repertório escolhido e o registro vocal que ele demanda – se uma peça pede uma tessitura de soprano ou mezzo, naturalmente, num grupo como esse, serão recrutadas vozes femininas, o contrário ocorrendo se estivermos falando de um tenor ou barítono. 

Numa temporada com dezenas de programas, no qual praticamente todos contam com um solista, já se pode entrever o desequilíbrio. Em contrapartida às seis solistas, em 2023 a Osesp terá cerca de 28 instrumentistas homens (digo “cerca” pois procurei não contar mais de uma vez solistas que fazem mais de um programa com a orquestra, ou que fazem também recitais solo, ou ainda o artista em residência, Stephen Hough, que tem diversas colaborações ao longo do ano). 

No que diz respeito a regentes, a Osesp traz cinco mulheres na temporada 2023, três delas para reger o coro. Apenas Marin Alsop e Alondra de La Parra estarão à frente da orquestra, enquanto Sofi Jeannin, Valentina Peleggi e Silvana Vallessi regem o Coro da Osesp em julho, outubro e novembro, respectivamente. Em contrapartida, são 18 os maestros homens, três deles regendo o coro e os outros 15, a orquestra.

Essa conta não leva em consideração os diferentes programas do maestro titular Thierry Fischer (13 ao todo) ou o fato de que cinco desses 15 regentes fazem dois programas diferentes com a orquestra. Ou seja, se desdobrarmos a participação masculina pelo número de programas, veremos que em mais de 30 subirá ao pódio da orquestra ou coro um maestro homem, em contraposição a cinco mulheres (nenhuma das regentes faz mais de um programa com a orquestra ou o coro). 

Mas o número mais escandaloso é, como se poderia esperar, o da presença de compositoras na temporada. Das 198 diferentes obras que serão apresentadas pela orquestra, pelo coro, pelo Quinteto Osesp e em recitais, apenas quatro são de compositoras: duas de Anna Thorvaldsdottir, pelo Coro da Osesp, em julho; uma de Gabriela Ortiz, com a orquestra, também em julho; e a estreia latino-americana de Dance – concerto para violoncelo, de Anna Clyne, em setembro.

Ou seja, num universo de quase 200 obras temos pouco mais de 2% de repertório composto por mulheres na programação. E isso sem entrar em pormenores, como por exemplo o fato de que uma sinfonia de Mahler (a nº 3, com mais de 90 minutos de duração) ou Rachmaninov (a nº 2, com mais de 50 minutos) é contada tão somente como uma unidade, da mesma forma que as peças corais de Thorvaldsdottir – uma delas, Hey thú oss himnum á (Você nos ouve no Céu) tem cerca de 5 minutos. Se a comparação se desse por minutos de música, a situação ficaria muito mais grave.

Criar um grupo integrado só por mulheres pode ser uma forma cômoda de mascarar a situação de desequilíbrio. O objetivo da luta pela inclusão não é criar espaços exclusivos para mulheres. Mais importante do que isso é integrá-las de forma equilibrada nas diferentes atividades da temporada

Pensando de forma bastante pragmática, dificilmente uma orquestra que se dedica ao repertório clássico-romântico conseguirá atingir um equilíbrio de 50% de obras escritas por homens e outros 50% por mulheres. Mas, quando se adentra no século XX e sobretudo quando se chega na música contemporânea, não há mais como contemporizar. E, de qualquer forma, há um abismo – de postura, de vontade, de exemplo – entre não se chegar a programar 50% de mulheres e programar 2%. 

Embora sendo uma iniciativa interessante, criar um grupo formado exclusivamente por mulheres – o Quinteto Osesp, que estreia nessa temporada – não é em si sinal de equidade de gênero. Que repertório esse grupo vai tocar? Além disso, criar um grupo integrado só por mulheres pode ser uma forma cômoda de mascarar a situação de desequilíbrio. O objetivo da luta pela inclusão não é criar espaços exclusivos para mulheres, como se fosse algo “especial”, que devesse ser tratado de forma diferente. Não há mal nenhum em se ter um grupo só de mulheres, mas muito mais importante do que isso é integrá-las de forma equilibrada nas diferentes atividades da temporada. 

Falo da Osesp com plena consciência de que aconteceria algo parecido se analisasse a temporada da maioria das orquestras brasileiras. Mas já que se tornou um paradigma nacional e gosta de estabelecer padrões de excelência, a Osesp poderia dar o exemplo também neste aspecto.

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Já mais para o final da temporada passada, a Osesp anunciou uma mudança importante: um novo arranjo institucional que extingue o cargo de diretor artístico. Infelizmente, a medida não parece auspiciosa para esta e outras questões que a orquestra deve enfrentar. O cargo de diretor artístico da Fundação Osesp envolvia pensar e estruturar as atividades da orquestra, dos coros, dos grupos de câmara, da Academia Osesp, dos recitais solo. Isso sem falar das demais atividades da Sala São Paulo e do Festival de Inverno de Campos do Jordão. Como acreditar que sem uma figura que conheça nossa música e nossa realidade, e que se dedique exclusivamente a pensar e articular as diversas questões envolvidas em cada uma dessas atividades, as coisas irão melhorar? Lembremos que a Osesp não tem sequer um maestro (ou maestra) assistente que acompanhe o dia a dia da orquestra e possa absorver ao menos parte dessas funções.

Se num primeiro momento esses dois assuntos podem parecer desconectados (a falta de mulheres na programação e a ausência de uma figura que articule todas as atividades da Fundação Osesp), creio que, no fundo, eles têm tudo a ver: trata-se da necessidade da orquestra dialogar com o mundo contemporâneo e, ao mesmo tempo, com as demandas da comunidade na qual está inserida: o centro de São Paulo, a maior cidade da América Latina, o estado mais rico da federação e um Brasil que deseja urgentemente retomar seu futuro. 

Sala São Paulo

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