Há dois anos, a morte solitária em Paris da mezzo soprano brasileira Maria d’Apparecida chamou a atenção de parte do mundo musical. Para alguns, era a primeira vez que se ouvia falar naquele nome. Com quase 92 anos, a cantora, que não se apresentava há pelo menos 15 anos, morreu sozinha e esquecida no dia 4 de julho de 2017. Seu corpo só foi descoberto por vizinhos dias após a morte. Encaminhado ao IML, estava prestes a ser enterrado como indigente, até que, pela mobilização de conhecidos e admiradores, acionou-se a embaixada brasileira e Maria d’Apparecida foi finalmente sepultada, mais de dois meses após sua morte.
Foi um final triste para a primeira brasileira negra a consagrar-se como protagonista da ópera Carmen na Ópera de Paris. Filha de uma empregada doméstica engravidada pelo filho do patrão, Maria d’Apparecida foi criada no Rio de Janeiro por uma família que a educou junto com os seus filhos, embora nunca tenha sido adotada oficialmente. Teve aulas de francês e piano e cursou o Conservatório Brasileiro de Música. Ao vencer um concurso promovido pela Associação Brasileira de Imprensa, tentou iniciar carreira no canto.
Em entrevista a Lauro Gomes na Rádio MEC (veja abaixo), ela contou: “Quando eu quis fazer carreira lírica no Brasil um ítalo-brasileiro me disse: ‘Maria d’Apparecida, você tem uma bela voz, mas você é negra. E negra não canta no Theatro Municipal’. Aquilo pra mim foi uma tal pedrada... Eu tive que abandonar pátria e família, não foi fácil”.
Maria d’Apparecida teria primeiro que se consagrar na Europa, causando enorme impacto no papel de Carmen, na década de 1960, para só então estrear no Municipal carioca, em 20 de agosto de 1965. O início da carreira europeia, no entanto, se deu com a canção de câmara brasileira. Ela partiu com o compositor Waldemar Henrique para tentar a sorte no velho continente em 1959 e, juntos, apresentaram-se em Portugal, Madri e Paris, onde gravaram um disco – o primeiro dos mais de 20 que ela faria.
Um exemplo de seu repertório pode ser conferido no programa (disponibilizado online pelo Instituto Piano Brasileiro) de um recital que ela deu no Rio de Janeiro em 1972, acompanhada ao piano por Hermelindo Castello Branco, e no qual constam canções de Villa-Lobos, Waldemar Henrique, Mignone e Almeida Prado, além de árias das Bodas de Figaro, Contos de Hoffmann, West side story e, claro, Carmen.
O recital aconteceu dois anos antes de um desastre que teria consequências definitivas. No Natal de 1974, ela sofreu um acidente de carro grave, do qual levaria três anos para se recuperar. Voltou ao canto lírico, mas não era mais capaz de cantar uma ópera inteira, e acabou enveredando pela música popular: o disco “Maria d'Apparecida chante Baden Powell”, de 1977, marcou a virada na carreira e foi recebido com bastante sucesso. À época do lançamento, Carlos Drummond de Andrade publicou um texto no jornal dando notícias da artista e da retomada de sua carreira. Ao final, dedicou “para Maria d’Apparecida, este quase poema resultante de uma admiração afetuosa”, cujos versos finais dizem: “Tua voz, d’Apparecida, é aparição / fulgurante, sensitiva, dramática / e vem do fundo nigroluminoso de nossos corações / e vai, e volta e vai, / Maria d’Apparecida do Brasil, /aparecedoramente cantaril”.
O poema de Drummond não foi a única obra que a cantora inspirou: Maria d’Apparecida foi musa do pintor surrealista Félix Labisse (1905-1982), com quem teve um longo romance e que a retratou em ao menos 15 telas.
Essa história impressionante de glória e esquecimento lembra a de outra cantora negra brasileira, Lapinha – Joaquina Maria da Conceição Lapa – que, em pleno final do século XVIII e início do XIX, alcançou sucesso tal que a levou a uma longa excursão pela Europa. O viajante sueco Carl Ruders (1761-1837), que a viu cantar em Lisboa, anotou: “Joaquina Lapinha é natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente, porém, remedeia-se com cosméticos. Fora disso, tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramático”. Apesar do sucesso, não se conhece sequer um retrato de Lapinha, e não se sabe sua data de nascimento nem de morte – ao que parece, quando deixou os palcos tornou-se invisível.
Se as histórias se aproximam, os tempos são outros e felizmente há pessoas empenhadas em não deixar a trajetória de Maria d’Apparecida se apagar. Uma delas é a escritora Mazé Torquato Chotil, que acaba de lançar, na França, Maria d’Apparecida – Une Maria pas comme les autres. Brasileira radicada em Paris, Mazé doou os direitos autorais resultantes da biografia (que deve ser lançada no Brasil em 2020) para a associação “Les amis de Maria d’Apparecida” (Os amigos de Maria d’Apparecida) organizada após a sua morte com o intuito de preservar seu legado. A organização montou um website no qual se pode recuperar várias informações da artista como fotos, discografia e matérias de jornal.
Ainda na internet, é possível conferir diversos vídeos de Maria d’Apparecida, especialmente suas gravações de música popular. Da década de 1970, por exemplo, há vídeos dela cantando num mesmo programa de TV trechos de Carmen e música popular brasileira.
Destaco duas gravações das quais gostei particularmente. A primeira é Cálice, de Chico Buarque, do disco “Couleur Brasil”, de 1989:
Há mais de uma versão de Maria d’Apparecida para Tamba-Tajá, clássico de Waldemar Henrique. Uma, em arranjo orquestral, me pareceu especialmente preciosa. Realizada em 13 de abril de 1960, para a TV francesa, mostra uma interpretação feita de economia de meios, precisão técnica, dicção límpida e um canto que encontra um ponto de equilíbrio elegante entre o despojamento popular e a impostação lírica.
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