Em livro, Caroline Potter propõe uma reorientação radical dos estudos sobre Boulez, distanciando-se de análises musicais detalhadas e privilegiando uma resposta emocional mais ampla e visceral ao seu trabalho
Nós nos acostumamos a louvar o rigor, a complexidade e o radicalismo da santa trindade das vanguardas europeias da segunda metade do século XX: Karlheinz Stockhausen, Henri Pousseur e Pierre Boulez. De fato, eles transformaram a música do século XX abolindo as fronteiras entre música e ciência, música e tecnologia. Particularmente Boulez, nascido há exatos cem anos, em 26 de março de 1925. Ele foi o mais decisivo. Ensinou-nos que tecnologia é conhecimento aplicado. E que todo compositor precisa ser também um cientista se quiser atribuir algum sentido atual à sua criação.
Pois um livro lançado no ano passado muda o foco e sacode certezas há muito repetidas em relação a este que é, sem dúvida, um dos mais importantes compositores dos últimos cem anos. Em Organised Delirium (Boydell Press), Caroline Potter começa dizendo que “a produção criativa de Pierre Boulez geralmente é estudada de uma perspectiva analítica musical no contexto do serialismo, mas eu afirmo que o contexto literário francês e o contexto intelectual mais amplo de seus anos de formação foram igualmente, se não mais, importantes para sua evolução musical”. “Este estudo revelará o impacto crucial desse contexto no surgimento de Boulez como compositor, aprimorando nossa compreensão de sua obra ao conectá-la com tendências significativas na cultura francesa contemporânea e reorientando os estudos de Boulez para longe da análise musical detalhada e em direção a uma resposta mais visceral e emocional à sua obra.”
Ela entrega o que promete. Em apenas 200 páginas, esmiúça as influências emocionais e culturais nas primeiras obras de Pierre Boulez, bem como o papel que o surrealismo e a cultura francesa das décadas de 1930 e 1940 desempenharam na formação de seus novos conceitos musicais radicais.
De repente, nomes inesperados associados ao surrealismo, sobretudo René Char, mas também Antonin Artaud e André Breton, surgem como cruciais para o desenvolvimento musical de Boulez. Em suma, Caroline Potter propõe uma reorientação radical dos estudos sobre Boulez, distanciando-se de análises musicais detalhadas e privilegiando uma resposta emocional mais ampla e visceral ao seu trabalho.
Preparando uma série de programas na Cultura FM em comemoração de seu centenário de nascimento, comecei a me dar conta de como a leitura deste livro modificou bastante minha compreensão de sua obra, sobretudo as criações dos anos 1940.
“Boulez tende a ser rotulado como um compositor cerebral”, escreve Potter, mas “seu interesse em estrutura coexistiu com uma extrema energia visceral. Este livro restabelece o equilíbrio e enfatiza o ambiente cultural febril de Paris na década de 1940 e o lado emocional de suas primeiras obras”.
Ela privilegia o jovem Boulez ainda aluno de Messiaen, ou, em suas palavras, “como um músico emergente” que “explorou novos conceitos musicais radicais ao lado de colegas como Yvette Grimaud, Serge Nigg e Yvonne Loriod, tocando e trocando ideias com eles”.
Minha missão neste modesto texto comemorativo de seus 100 anos de nascimento é mostrar que não existem verdades eternas, como Potter nos ensina. O ano era 1948, em que ele compôs uma obra decisiva, a Sonata nº 2 para piano. Naquele mesmo ano, ela lembra que Boulez escreveu o artigo “Propositions” sobre o ritmo na música. Boulez conclui assim o artigo (cito a partir do livro de Potter): “Tenho uma razão pessoal para dar um lugar tão importante ao fenômeno do ritmo. Penso que a música deveria ser uma histeria e magia coletivas, violentamente modernas – seguindo as linhas de Antonin Artaud e não no sentido de uma simples reconstrução etnográfica à imagem de civilizações mais ou menos distantes de nós”.
Potter anota que “é impossível ler este trecho sem considerar o impacto central de Artaud no jovem Boulez. ‘Histeria’ e ‘magia’ talvez não sejam as palavras que imediatamente vêm à mente com Boulez, dada a visão popular dele como um matemático que fez musical cerebral, mas o impacto emocional avassalador de seu trabalho inicial é o oposto de seco e calculado. E a imagem de Boulez, o matemático, também é enganosa e talvez se relacione mais com sua biografia, especificamente seus estudos escolares em matemática avançada”. Verdade: os resumos sobre sua vida sempre citam que ele balançou entre a música e a matemática até decidir-se de vez pela primeira. Aí Potter dá o xeque-mate: “A fixação de Boulez com números na música – não apenas o número 12, associado ao serialismo – não é matemática: ao contrário, é mágica”.
Me encantam os livros que destroem nossas certezas. Ajudam-nos a ficarmos alertas e jamais adormecer em certezas e chavões. Não resisto em terminar de atiçar a vontade dos leitores de conhecer este livro precioso, citando Potter: “A suposição geral é que a música de Boulez representou uma ruptura modernista do pós-guerra com o que havia acontecido antes, mas seus vínculos estéticos com o surrealismo mostram que os fios contínuos da cultura pré-guerra são fundamentais para seu trabalho”.
Nisso, aliás, ela está na mesma página que Paul Griffiths: “Boulez compôs, em seus vinte e poucos anos, música que se assemelhava à violência e ao êxtase nos escritos recentes de Antonin Artaud – música de ‘fúria e mistério’, para citar o título de uma coleção de poemas de outro escritor que Boulez admirava muito: René Char”.
![O compositor Pierre Boulez [Divulgação/Deutsche Grammophon]](/sites/default/files/inline-images/w-boulez-website.jpg)
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Comentários
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Ricardo Athaide Mitidieri. …
Ricardo Athaide Mitidieri. Excelente o livro da Potter. Há uns anos fiz observações um pouco semelhantes no artigo "Nos confins do estético: o sentido ético existencial da música autônoma segundo Boulez". Escrevi la´: "tomar o que é inexato e indefinido como uma função da arte, não parece ser um indício de adesão a uma concepção cientificista.[...] nada é mais distante do alvo estético de Boulez do que a perfeição e total compreensão da obra de arte, sua total racionalização..." No período em que esteve influenciado por Artaud, Boulez chegou a escrever a indicação "comme la macumba" em uma partitura para teatro, impressionado que tinha ficado com uma visita a um terreiro no Brasil. Depois, como descreve Potter, substituiu a histeria artaudiana pelo mistério de Mallarmé enquanto modelo estético.