Já comentei aqui sobre a excelente apresentação da Osesp com Marin Alsop e a soprano italiana Anna Caterina Antonacci na abertura do III Festival de Inverno da Sala São Paulo (Fissp), no último dia 29 de junho (leia aqui). E segui acompanhando a grande programação do festival, na Sala São Paulo, que nessas três semanas passadas teve destaques como a Filarmônica de Goiás com Neil Thomson e Luíz Fílip, a Camerata Antiqua de Curitiba com Luis Otavio Santos, a Orquestra de Bolsistas do Festival com Sian Edwards, o excelente Arnaldo Cohen, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre com Pablo Rossi, o Grupo de Música Antiga e a Camerata do Festival com Lavard Skou Larsen, sem falar em ótimas atrações de câmara.
Como desde a sua criação, em 2016, o Fissp também neste ano está levando suas atrações para Campos do Jordão (infelizmente sem a solista Antonacci no concerto de abertura), em uma bem-vinda iniciativa de levar a música de concerto para fora da capital.
O Festival de Inverno da Sala São Paulo também investiu em sua vertente pedagógica, que neste ano conta com 198 bolsistas, entre os quais 108 alunos com bolsas integrais, que estão hospedados no Hotel Piratininga (ali, em frente à Sala São Paulo, ao lado da Emesp – Escola de Música do Estado de São Paulo). As master classes e aulas são realizadas na própria Sala São Paulo, com apoio ocasional de salas da Emesp, ministradas por cerca de cinquenta professores, entre os quais cerca de dez que vieram de países do exterior.
Oxalá esta terceira edição do Festival de Inverno da Sala São Paulo seja mais um passo na consolidação do evento, que já é, hoje, o maior do gênero na América Latina!
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O texto acima terminaria aqui, não fosse necessária uma importante correção. Não há, claro, nenhum “Festival de Inverno da Sala São Paulo” – o que temos, formalmente, é o Festival de Inverno de Campos do Jordão. Mas a ironia é para chamar a atenção de que, de fato, aquele antigo Festival de Inverno de Campos do Jordão já não existe mais. Um festival que realiza toda sua parte pedagógica em São Paulo e que tem suas principais atrações de recitais e concertos realizados na Sala São Paulo, não é um festival de Campos do Jordão!
A história é conhecida. Em razão da crise e dos cortes orçamentários promovidos pela Secretaria da Cultura, a Fundação Osesp viu-se obrigada a transferir, em 2016, toda a programação pedagógica para a Sala São Paulo. A decisão levou a uma importante economia, e assim possibilitou a manutenção da maior parte das realizações do festival. Em entrevista à Revista CONCERTO, o violonista Fabio Zanon, coordenador artístico-pedagógico do festival, sintetizou a situação com clareza: “A mudança para São Paulo foi uma ideia que surgiu por uma contingência econômica. Há três anos, ficamos com o orçamento reduzido pela metade e dissemos: ‘Vamos fazer um festival de 15 dias ou vamos ter outra ideia?’. E a outra ideia foi o festival em São Paulo. Isso representa uma economia de R$ 2 milhões. O problema é que, agora, temos outro modelo de festival, pois aumentou o número de bolsistas – até pelas facilidades de espaço, vagas de hotel etc. – e aumentou nossa oferta pedagógica”. E mais para frente, Zanon emenda: “No longo prazo, todo mundo quer voltar para Campos do Jordão. [...] (mas) O festival só poderia voltar para lá com o centro de estudos, uma infraestrutura construída para abrigar todas as atividades. O ano que vem é a ocasião para se discutir isso de novo, pois marca os 50 anos do festival”.
É muito bom e oportuno Fabio Zanon levantar essa questão! Na coletiva de imprensa que lançou o Festival de Inverno de 2009, o então secretário da cultura João Sayad apresentou um arrojado projeto de alojamento para bolsistas em Campos do Jordão – talvez um dos principais problemas de infraestrutura aos quais Zanon se refere.
O festival completava então 40 anos e vinha em importante curva ascendente de desenvolvimento. De lá para cá, infelizmente, as coisas mudaram: nunca mais soubemos nada do tal do alojamento, as verbas públicas para a Cultura despencaram e, desde 2016, o Festival é realizado na Sala São Paulo.
Vamos lembrar de Eleazar de Carvalho e de Tanglewood: festival de música é reunião e intensa comunhão de alunos e professores, é imersão em um ambiente pleno de música. Os alunos que antes se reuniam na natureza serrana sob as copas das araucárias, hoje correm dos drogados da Cracolândia quando atravessam a praça que separa o Hotel Piratininga da Sala São Paulo.
É necessário reconhecer que aquele tradicional Festival de Campos do Jordão, que formou gerações de músicos alguns de projeção internacional, já não existe mais. Em seu lugar temos um importante festival, sim, com 198 bolsistas e muitas grandes atrações em São Paulo – que também acontecem em Campo do Jordão –, e que deveríamos, honestamente, chamar de Festival de Inverno da Sala São Paulo (com o sonoro acrônimo Fissp). E se este festival ainda mantém uma vitalidade pedagógica e artística, isso se deve ao modelo das Organizações Sociais e à competência gestora da Fundação Osesp.
Seria desejável que o governo reconhecesse o prejuízo, retomasse a ideia original do evento e finalmente investisse em uma infraestrutura adequada em Campos do Jordão. Assim poderíamos comemorar a 50ª edição do Festival de Inverno de Campos do Jordão, no ano que vem, em Campos do Jordão – e não na Sala São Paulo!
Leia na Revista CONCERTO:
Entrevista com Fabio Zanon, coordenador artístico-pedagógico do Festival de Inverno de Campos do Jordão, por Irineu Franco Perpetuo
Leia também:
“Campos do Jordão, Salzburg e a economia da cultura”, por Nelson Rubens Kunze