Decana das compositoras brasileiras, ela possui 82 obras para diferentes formações, num impressionante arco que vai de 1942 até 2024
A Academia Brasileira de Música acaba de lançar o catálogo de obras de Kilza Setti. Dentre as iniciativas mais importantes que a ABM encabeça está a publicação de catálogos de compositores que são (ou foram) seus membros. A série conta com 15 volumes, com nomes como Francisco Mignone, Mário Ficarelli, Ronaldo Miranda e Ernst Mahle. Kilza é a primeira mulher a integrar o conjunto. Todos os volumes podem ser baixados gratuitamente no site da instituição [clique aqui] – na mesma página, aliás, onde pode ser encontrada toda a coleção digital da revista Brasiliana, que a ABM publicou no início dos anos 2000.
Aos 93 anos completados no final de janeiro, Kilza é a decana das compositoras brasileiras. Olhando para a sua formação, percebe-se que o seu aprendizado foi um caminho que tocou em alguns dos principais momentos da música brasileira do século XX: Kilza teve aulas com Fructuoso Vianna (um dos participantes da Semana de 22), graduou-se em piano no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (onde deram aula Mário de Andrade e Francisco Mignone, entre outros) e foi aluna de composição de Camargo Guarnieri, entre 1954 e 1960.
Acontece que ela também se interessou pela pesquisa. Em 1970, passou a estudar etnomusicologia no Arquivo Musical Português, investigando uma possível conexão entre a música portuguesa e a música desenvolvida pelos pescadores caiçaras do litoral brasileiro. Esta pesquisa acabou se desenvolvendo e culminando em uma tese de doutorado defendida em 1982 em Antropologia Social na USP. O pioneiro estudo Ubatuba nos Cantos das Praias foi publicado em livro em 1985. Já na década de 1990, ela estudou a música dos índios Guarani-Mbyá de São Paulo e canções rituais dos índios Timbira do Maranhão e de Tocantins.
Tudo isso se reflete em sua música. Seu catálogo compreende 82 obras para diferentes formações, num impressionante arco que vai de 1942 (El dançar flamenco, obra para piano solo escrita quando ela tinha 10 anos de idade) até 2024 (quando completou o Trio para violino, viola e violoncelo), totalizando 82 anos de atividade composicional. Kilza desenvolveu um estilo livre, dentro do qual predominam obras vocais (canto coral e canto lírico), sobretudo nas composições de câmara. Nesta vertente, chama atenção o trabalho com poetas brasileiros do século XX: ela musicou Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Suzana de Campos e Hilda Hilst, entre outros.
Se no começo do século XX a música indígena e as tradições populares eram um caminho para que os compositores brasileiros realizassem uma música moderna e nacional, para Kilza, dialogar com a herança dessas populações é uma maneira de chamar atenção para sua situação atual
Já as pesquisas etnomusicológicas são a base para trabalhos importantes como a Missa caiçara, com texto em latim e português e utilização de instrumentos próprios dos pescadores (viola caipira, rabeca, caixa). A obra é de 1980 e estreou em 1996 com o Coral Paulistano regido por Samuel Kerr. Já Hõkrepöj, de 1995, é resultado direto de sua vivência com os timbiras. Para voz soprano e conjunto de câmara, utiliza palavras usadas em cantos rituais dos povos indígenas Krahô (Grupo Timbira, língua Jê, do Tocantins) e foi estreada no mesmo ano de sua composição na XI Bienal de Música Brasileira Contemporânea.
Se no começo do século XX a música indígena e as tradições populares eram um caminho para que os compositores brasileiros realizassem uma música moderna e nacional, para Kilza, dialogar com a herança dessas populações é uma maneira de chamar atenção para sua situação atual. Trechos de cantigas populares tradicionalmente cantadas em festividades para evocar São Gonçalo, padroeiro das mulheres inférteis e das prostitutas, são utilizados na Missa caiçara para chamar atenção sobre a opressão patriarcal sofrida pelas mulheres em áreas remotas brasileiras. Seu material de pesquisa sobre a música dos caiçaras foi doado ao município de Ubatuba.
Kilza foi responsável pela inclusão da música como disciplina na grade escolar (bilingue) da Escola Timbira, para a qual criou material didático especial sobre apreciação e escuta musical de repertórios do mundo. Ela mesma ministrou, até 2006, aulas e oficinas em cursos de formação de professores para ensino fundamental de seis etnias indígenas do povo Timbira, do Maranhão e Tocantins.
A bem cuidada organização do catálogo é de Valéria Peixoto. Além das obras organizadas por gênero e em lista alfabética, a publicação tem uma alentada apresentação sobre a compositora, incluindo suas publicações e artigos, bem como as referências a ela em livros, teses, bancos de partituras e jornais, entre outras. Com informações detalhadas e atualizadas em mãos, espera-se que nossas instituições e artistas deem maior atenção à obra de Kilza Setti, a exemplo do que fez, há alguns anos, o Núcleo Hespérides – Música das Américas, que lançou disco e documentário sobre a compositora.
![A compositora brasileira Kilza Setti [Divulgação/Unicamp]](/sites/default/files/inline-images/w-kilza_setti.jpg)
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