Babayan e Brahms em uma noite memorável

Para um concerto monumental, um solista monumental. Se o controverso Beethoven de Tom Borrow desencadeou uma autêntica epidemia de narizes torcidos entre críticos e pianólatras, parece não haver dúvidas de que Sergei Babayan é o solista ideal que a Osesp poderia ter no segundo concerto para piano e orquestra de Brahms.

Como se sabe, Brahms era pianista, e estreou seu primeiro concerto para o instrumento em 1859. A partitura era uma obra-prima, porém foi recebida com frieza, o que fez o compositor aguardar mais de duas décadas para voltar à forma – Brahms só estrearia seu segundo concerto em 1881, após ter freudianamente matado o “pai musical” Beethoven e se assumido como autor de sinfonias.

E daí veio “o” concerto por excelência, a síntese dos experimentos envolvendo piano e orquestra ao longo de todo o século XIX. Irônico que um autor tantas vezes acusado de “conservador” tenha operado a ousadia formal de fundir concerto e sinfonia. Em quatro movimentos como as sinfonias (e não em três como os concertos), o Concerto nº 2 em si bemol maior, Op. 83, integra profundamente solista e orquestra. A escrita para o piano é extremamente exigente, mas não reserva qualquer espaço para fogos de artifício ou exibicionismo muscular.

E a complexidade da escrita orquestral talvez seja a chave para esta obra ser relativamente pouco programada no Brasil – especialmente depois da prematura e sentida perda de Nelson Freire, que dele fazia seu cavalo de batalha, e praticamente “impunha-o” a nossas orquestras.

Sob a direção da meticulosa chinesa Xian Zhang, a Osesp revelou-se à altura da empreitada. Um ou outro desacerto pontual (especialmente no primeiro movimento) foi mais do que compensado pela alta carga expressiva da performance, e o detalhismo de Zhang contribuiu para colocar de pé em pouco tempo um programa para lá de exigente (Brahms foi precedido pela lírica Im Sommervind, de Anton Webern, e sucedido por um dos mais robustos poemas sinfônicos de Richard Strauss, Also sprach Zarathustra).

Babayan traz uma leitura bastante pessoal da obra, refletida em escolhas peculiares de fraseado, de ataque, no uso do rubato e na coordenação e hierarquização entre mão direita e esquerda. Não apenas cada movimento é um mundo em si, como suas próprias seções internas também merecem caracterizações distintas. Tudo que ele tem a dizer sobre Brahms é interessante. E ele tem muito a dizer

Cidadão norte-americano, Sergei Babayan nasceu na Armênia, onde estudou com um discípulo do “Cortot russo”, o poético e idiossincrático Vladímir Sofronítski. Posteriormente, no Conservatório de Moscou, esteve sob orientação de dois pupilos do legendário Heinrich Neuhaus (Lev Naúmov e Vera Gornostáieva), além de Mikhail Pletniov. Como professor, em Cleveland, passou esse legado ao incandescente Daniil Trífonov, que toca em São Paulo no mês que vem. Babayan e Trífonov acabam de lançar um álbum em duo, chamado Rachmaninoff for Two e, em entrevista a ser publicada na edição de julho da Revista CONCERTO, o jovem astro do teclado refere-se ao parceiro como seu “mentor”.

E que mentor! Nem as mais modernas tecnologias de gravação dão conta de reproduzir o volume tonal de Babayan ao teclado – uma “catedral sonora” para bruckneriano nenhum botar defeito. Só alguém muito ranzinza poderia condenar o público da Sala São Paulo por aplaudir ao final de cada movimento do concerto. Pois não apenas o gestual da obra, como a própria qualidade da performance parecia requerer palmas constantes.

Babayan traz uma leitura bastante pessoal da obra, refletida em escolhas peculiares de fraseado, de ataque, no uso do rubato e na coordenação e hierarquização entre mão direita e esquerda. Não apenas cada movimento é um mundo em si, como suas próprias seções internas também merecem caracterizações distintas. Tudo que ele tem a dizer sobre Brahms é interessante. E ele tem muito a dizer.

Percebo agora que enfatizar o volume da sonoridade de um pianista pode passar a impressão de que se trata de um “lenhador” do teclado, monótono produtor de fortíssimos e incapaz de cantar. Nada mais falso com relação a Babayan. Assim, após um scherzo demoníaco, ele evocou de maneira mágica o intimismo noturno do Andante. Nesta jornada poética pelo rico mundo interior de um dos mais profundos compositores do século XIX, Babayan teve como parceiro de música de câmara o violoncelo de Rafael Cesário, responsável por alguns dos momentos mais encantadores da noite.

No Allegretto grazioso que encerra a obra, Babayan abriu com uma abordagem aparentemente rapsódica para depois colorir com muita ginga cada um dos episódios do rondó – uma deliciosa união entre a gloriosa sonoridade da escola russa e o picante tempero que caracteriza a culinária do Cáucaso.

Depois de tamanha maratona pianística, é até cruel exigir que o solista toque mais. Mas Babayan é um daqueles artistas que dá vontade de ouvir indefinidamente. E bis houve: a ária das Variações Goldberg, de Bach, em leitura refinada e cristalina. Como que devolvendo Brahms à sua fonte primordial. E fechando o círculo de afetos de uma noite memorável.

O pianista Sergei Babayan [Divulgação/Deutsche Grammophon]
O pianista Sergei Babayan [Divulgação/Deutsche Grammophon]

 

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Comentários

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Gostaria humildemente de concordar com alguns pontos, mas discordar construtivamente no aspecto de que a execução deste solista (pelo menos no concerto de quinta-feira) não teve, quanto à limpidez e uso do pedal, a excelência proporcional à mostrada nos outros aspectos comentados. Já a interpretação da orquestra nas peças comentadas mereceria mais elogios pelo balanço dos sons e precisão (sopros particularmente muito bons).

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Concordo, também humildemente, com o comentário anterior. Achei que o uso do pedal foi um pouco exagerado, fazendo com que a peça perdesse um pouco de nitidez.
Adorei a maestrina e a execução da orquestra nas 3 peças da noite. Destaque para a execução de Richard Strauss. Também gostei muito do bis do pianista. Obs.: concerto do sábado.

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