Sala São Paulo 20 anos

por João Luiz Sampaio 01/07/2019

Palco celebra aniversário como marco da música brasileira – e de seus desafios

Na primeira semana de julho de 1999, o assunto invadia as páginas de jornais e revistas em matérias quase todas superlativas. “Sinfonia de Mahler inaugura novo templo da música”, dizia uma delas. “Já há até quem a compare à Royal Concertgebouw, de Amsterdã”, anotava outra. “Músicos da Osesp choram ao ver sua nova casa”, relatava um jornalista. “Inauguração atrai do presidente ao pipoqueiro”, dizia o título de uma reportagem. “Do lado de fora, havia gente que, mesmo sem ingresso, queria apenas ver ‘o que era bonito’”, anotava outro repórter. “Viva a música”, celebrava, resumindo o encanto generalizado, a manchete de uma revista semanal.

As notícias referiam-se à inauguração da Sala São Paulo, no dia 9 de julho, com a Osesp e John Neschling interpretando a Sinfonia nº 2, Ressurreição, de Gustav Mahler. E, vinte anos depois, a expectativa inicial converteu-se na celebração de um marco na história da música brasileira. “É impossível minimizar a importância da Sala São Paulo para a vida musical da cidade e, por extensão, do país. Não é exagero dizer que foi graças à Sala São Paulo, com tudo o que ela congrega, que São Paulo é hoje reconhecida como capital musical da América Latina”, diz Arthur Nestrovski, diretor artístico da Fundação Osesp. “A sala tem cumprido seu papel histórico de ser o novo centro de gravidade da música clássica da América Latina, um lugar que antes era ocupado solitariamente pelo Teatro Colón. Ela colocou o Brasil definitivamente no cenário internacional da música de concerto”, completa o diretor executivo Marcelo Lopes.

É certo que vinte anos, à luz de instituições musicais centenárias, fora e dentro do Brasil, pode parecer pouco. Mas, com certeza, foram tempos agitados. Ao longo desse período, a sala viu a Osesp se transformar em um projeto de sucesso; estabeleceu padrões de excelência artística; acompanhou o nascimento de um novo tipo de gestão de projetos culturais, que influenciaria todo o meio musical; recebeu os principais artistas do mundo; testemunhou brigas e desentendimentos entre maestros e músicos; foi palco de manifestações políticas; tornou-se, enfim, símbolo da música clássica brasileira – e de desafios que, cada vez maiores, precisam ainda ser enfrentados de maneira eficaz.

[Revista CONCERTO / Anthony Kunze]
[Revista CONCERTO / Anthony Kunze]

Um pouco de história

Desde as primeiras notícias a respeito da nova Osesp, as páginas da Revista CONCERTO no fim dos anos 1990 acompanharam de perto o caminho que levou à criação da Sala São Paulo. Em novembro de 1996, após a morte de Eleazar de Carvalho, John Neschling tornou-se o favorito para assumir a orquestra. Em março do ano seguinte, ele aceitou o convite e o desafio de “reerguer” o grupo, que, nas páginas da revista, foi rebatizado de “Orquestra Sinfônica em Sede Provisória”: sem casa, a Osesp havia abandonado o Memorial da América Latina e ocupava o Theatro São Pedro. Logo, porém, chegou a notícia, registrada em abril de 1997: a Estação Júlio Prestes seria reformada para se transformar “numa das três melhores salas de concertos”, segundo promessas de Russel Johnson, presidente da Artec, empresa especializada em engenharia acústica contratada para realizar a obra. Dois anos depois, a CONCERTO acompanhou o primeiro teste acústico da nova sala, com o público formado pelos operários da obra. E anunciou a data para a inauguração: dia 9 de julho.

O que se soube um pouco mais tarde foi que a ida de John Neschling a São Paulo para dirigir a Osesp havia sido condicionada à criação de uma nova sede para o grupo. É ele quem relembra o que se passou naqueles dias, no livro Música mundana, esboço de biografia lançado em 2009. Ainda em 1996, antes de aceitar o convite da Secretaria de Estado da Cultura, o maestro veio ao Brasil com Chris Blair, técnico da Artec, para conhecer teatros que haviam sido oferecidos como sede da Osesp. O Memorial foi prontamente descartado. O Teatro Sérgio Cardoso também, assim como vários outros locais, e a opção, então tratada como inviável, seria construir um teatro do zero. “Eu confirmara meus temores: a primeira das condições não poderia ser preenchida, e meu sonho de trabalhar seriamente no Brasil estava tão longe como sempre”, escreveu.

Neschling e Blair estavam prontos para voltar à Europa e, poucas horas antes de embarcar, almoçavam, decepcionados. Mário Garcia, amigo do governador Mário Covas, havia comentado com eles sobre a Estação Júlio Prestes. O maestro não levou a ideia a sério, mas pediu que Blair fizesse uma visita antes de seguirem para o aeroporto. “Enquanto esperávamos no gabinete do secretário [Marcos Mendonça], decepcionados com o fato de não termos encontrado espaço adequado, a porta se abriu e entrou um Chris Blair pálido e esbaforido. Chamou-me de canto: ‘Achei o espaço com que todo engenheiro acústico do mundo sonha’, disse. ‘Essa é a sala de concertos que toda orquestra gostaria de ter’. Fiquei apalermado.” 

O relato continua. “‘Quanto vai custar uma obra dessas?’, perguntei já tomado por meu habitual nervosismo messiânico. ‘Uns 30 milhões de dólares, um pouco mais, dificilmente menos.’ ‘Secretário!’, exclamei, achamos o espaço ideal. Marcos sorriu, como sempre. ‘Ótimo’, disse. ‘E quanto vai custar?’ É agora ou nunca, pensei. ‘Pouca coisa, a ópera de Singapura custa 500 milhões de dólares’, disse. ‘Mas isso é uma fortuna!’ Reação esperada. ‘Claro, nosso projeto é muito mais barato, algo em torno de 30 milhões.’ Todos se entreolharam. Marcos pensou um pouco e na sequência disse o que eu queria, mas não esperava ouvir: ‘Se a gente convencer o governador, vamos adiante’. ‘Pode marcar a audiência’, respondi”. O “sim” de Covas viria dias depois.

 

Binômio sala/orquestra

Claudia Toni, diretora executiva da Osesp na época da inauguração da Sala São Paulo, se lembra dos primeiros momentos da orquestra na nova casa. “Nós tínhamos muita clareza a respeito de uma premissa do Neschling de que não existe orquestra sem sala nem uma sala sem conjunto que possa ocupá-la”, diz. “E a sala estava em um local extremamente democrático, ao lado de uma rede de transporte público que permitia que qualquer pessoa, de qualquer lugar da cidade, chegasse lá. E nos espantou também a capacidade da sala de, de repente, atrair as pessoas. No Theatro São Pedro, houve um momento em que havia 63 pessoas na plateia e 73 no palco. Mas em nosso último concerto lá havia 600 pessoas. Foi um trabalho sério para chegarmos a isso. E eu me lembro de pensar: agora precisamos encher um teatro de 1.500 lugares… Onde fomos nos meter?”, ela conta. “No primeiro ano, quando lançamos as assinaturas e esperávamos algo em torno de 500, vendemos 1.800.”

É difícil pensar a sala longe do projeto da nova Osesp. Eles, afinal, como diz Toni, nasceram juntos. E a capacidade da orquestra de realizar concertos semanais, com regularidade, pensando em temporadas no longo prazo, com grandes artistas e convidados, ajudou a fazer da sala uma referência – da mesma forma que sua existência permitiu à Osesp se colocar como paradigma de excelência no cenário nacional e internacional. Para Nestrovski, há tanto um ponto de vista musical a ser considerado, com a acústica especial da sala, quanto outro, “mais amplo”. “As instalações da Sala permitiram uma ampliação inédita das atividades da Osesp, que, além da sinfônica propriamente dita, reúne hoje coro, coro juvenil e coro infantil, uma academia de música (incluindo coro acadêmico), um quarteto de cordas e uma editora de partituras, além de uma área educativa de grande porte, sem falar no festival de inverno que há alguns anos concentra suas atividades pedagógicas aqui.”

E tal modelo não demorou a influenciar outras iniciativas. “Na Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, o projeto de reestruturação da Osesp foi mais determinante que a sala para a criação da orquestra, com suas histórias de sucesso, viabilidade e relevância”, diz o maestro Fabio Mechetti, diretor artístico do grupo. “Ao mesmo tempo, logicamente que toda orquestra de qualidade tem uma sala própria que propicia uma agenda ativa de programação. Quando a filarmônica foi pensada, concebeu-se também a construção de uma sala. A Sala Minas Gerais foi fundamental em posicionar a filarmônica e Belo Horizonte no cenário. Assim como a Sala São Paulo, ela confere à orquestra uma âncora física e artística que vem ajudando a orquestra na constante busca de excelência”, completa. 

Evandro Matté, atual diretor da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, relembra como a inauguração da sala foi fundamental para que a Ospa considerasse a criação de uma sala de concertos. “Foi um divisor de águas. Logo após a inauguração, o presidente da orquestra, Ivo Nesralla, foi a São Paulo conhecê-la e voltou para o Rio Grande do Sul defendendo para a sociedade a ideia de uma sala para Porto Alegre.” O projeto sofreria diversas mudanças, até que, em 2018, a Casa da Ospa foi inaugurada. “Ela é herança da Sala São Paulo”, diz Matté, que, como trompetista convidado, participou do concerto naquele 9 de julho. “Foi um dos grandes e inesquecíveis momentos de minha vida profissional.”

 

Um norte

Mas a criação da sala teve consequências no meio musical que extravasam o binômio nova orquestra/nova sala. O pianista Nelson Freire, que faz um recital comemorativo do aniversário no dia 9 de julho, é sucinto, mas preciso: “No fundo, o que a sala e o projeto Osesp mostraram foi que, quando há vontade de fato, projetos como esses podem acontecer”. E com a excelência em mente. Ricardo Castro, que na página 12 fala a Irineu Franco Perpetuo sobre a nova sede do Neojiba, oferece um olhar interessante sobre a questão. “A gente vai tocar Beethoven mal porque está na Bahia? Porque a gente vive num país pobre? Uma das primeiras pessoas que sacaram isso no Brasil foi John Neschling, quando disse: ‘A Osesp me interessa, mas eu quero uma sala sinfônica’. Quem teria a coragem de pedir a um político uma sala sinfônica? A Osesp só decolou quando a sala apareceu. Não vale a pena você construir um bangalô, porque está à beira da praia, e dizer que vai colocar uma orquestra para tocar lá.” 

Por sua vez, Helder Trefzger, diretor da Orquestra Sinfônica do Estado do Espírito Santo, afirma que o projeto construído em torno da sala colaborou para o fortalecimento das orquestras inclusive fora do eixo Rio-São Paulo. “Foi um paradigma também Brasil afora, com padrões de qualidade norteando horizontes”, diz. Guilherme Mannis, da Orquestra Sinfônica de Sergipe, concorda: “São Paulo mostrou ao Brasil e aos estados que a implantação e a manutenção de uma forte orquestra pública consiste em uma política cultural extremamente relevante para a sociedade”, afirma. Não por acaso, em artigo sobre a sala publicado na Revista CONCERTO em 2009, por ocasião dos dez anos de inauguração, Irineu Franco Perpetuo já chamava atenção para o fato de que, para grupos de todo o Brasil, tocar nela “passou a ser um verdadeiro ritual de passagem”.

“A Sala São Paulo teve um papel transformador na cena musical brasileira, já que foi a primeira sala de concertos de grande porte construída no Brasil. Sua excelência técnica e acústica criou uma nova referência para a escuta musical entre nós”, afirma Frederico Lohmann, superintendente da Cultura Artística – até então, o que se construía no Brasil eram teatros de ópera ou palcos multiuso. “E a monumentalidade e a beleza da sala também contribuíram para o incremento do interesse da população paulistana por música clássica. Muita gente passou a frequentar esse novo marco arquitetônico e, a partir daí, se interessar pelo que acontecia lá dentro. Tenho certeza de que tudo isso contribuiu para o aprimoramento da própria orquestra, iniciado pelo Neschling. E acho importante mencionar que a Sala São Paulo tornou-se, ainda, referência internacional, aumentando o interesse de músicos e orquestras em se apresentar em São Paulo.” Nelson Freire concorda. “Só ouço elogios dos artistas estrangeiros que nela se apresentam”, afirma.

Em texto sobre a temporada deste ano da Osesp, em que fala do aniversário da sala, mas também dos 50 anos do Festival de Inverno de Campos do Jordão, Nestrovski oferece outro paralelo importante, que diz respeito à geração de artistas e de público que se formou tendo a sala como referência. “Não há maior prova da diferença que fez a inauguração da Sala São Paulo que a qualidade dos jovens músicos da Orquestra do Festival. De repente, cai a ficha: eles têm a idade dela, cresceram ouvindo concertos ali. São eles, cada um e juntos, os melhores futuros de nosso passado e o mais eloquente exemplo de até onde se pode chegar quando aos projetos é garantida continuidade.” 

 

Paradoxo

De volta ao fim dos anos 1990, Claudia Toni lembra-se de que havia, em meio à euforia pela construção da sala, a expectativa, “talvez ingênua”, de que ela teria um poder transformador naquela região da cidade. “Junto com a Pinacoteca, imaginávamos que a sala fosse parte de um processo de revitalização do entorno, que se tornaria um dos espaços mais vivos e dinâmicos da cidade. O que ninguém podia imaginar era que, vinte anos depois, o entorno teria se degradado ainda mais”, afirma Toni. 

Pois foi o que aconteceu. E a Osesp e a Sala, que já foi chamada de bunker  em meio ao ambiente degradado da cracolândia, parecem não ter encontrado seu papel nesse contexto. “Ser relevante para uma comunidade passa pela percepção de que essa comunidade começa com seu vizinho, do outro lado da rua. A sala não soube, nesses vinte anos, construir uma relação com o entorno, enquanto no mundo todo orquestras e teatros têm procurado descobrir como fazer isso. Não se trata de imaginar que uma orquestra pode resolver o problema da cracolândia. Ela pode, porém, refletir sobre como se envolver nesse processo”, diz Toni. 

Para Marcelo Lopes, essa é de fato uma questão a ser enfrentada. “Hoje, diferente do que se pensava à época da inauguração, está bem claro para todos os formuladores de políticas públicas que a ocupação qualificada de áreas urbanas passa por ações multidisciplinares, das quais cultura, entretenimento e lazer são apenas alguns dos vetores necessários. De certa maneira, a Sala São Paulo sofre um paradoxo. Também vítima da degradação da região da cracolândia, ela é a primeira linha de defesa da cidade, pois a intensidade das atividades cria um limite que impede que o problema avance ainda mais. É um papel de resistência tão simbólico quanto no aspecto musical. Contudo, onde há crise pode haver oportunidade. A Sala São Paulo não está só na região. Ela é circundada por uma série de equipamentos culturais de referência. A recente construção de conjuntos habitacionais nas áreas adjacentes aproximou novos públicos e a necessidade de que esses equipamentos, preferencialmente em conjunto, realizem programas que abracem esse novo entorno e dialoguem melhor com seu exterior”, afirma.

Para ele, essa questão faz parte do futuro que se imagina para a Sala São Paulo. “Uma vez equacionados os problemas mais prementes, a sala precisa respirar a cidade, que por sua vez precisa se apropriar definitivamente da sala e de sua orquestra, sem as barreiras físicas e psicológicas atuais. Música na praça, mobiliário urbano renovado, atividades culturais diversificadas e mais interativas, ligação direta com o metrô – todas essas ideias são motivo de inspiração e desejos para os novos tempos.” 

E isso só é possível porque, para ele, a sala cumpriu um papel fundamental até agora. “A atividade da sala demonstra a resiliência de nossa classe artística e a responsabilidade dos agentes sociais na manutenção de um equipamento que significa, sobretudo, nossa capacidade de imaginar e realizar, de entender que a coexistência das linguagens é nosso maior ativo cultural. A Sala São Paulo é o monumento à música clássica que nos permite persistir em nossa missão de emocionar, inspirar e transformar as pessoas.” 


AGENDA
20 anos da Sala São Paulo
Nelson Freire
– piano
Dia 8, Sala São Paulo
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
Thierry Fischer
– regente
Dia 9, Sala São Paulo