Depois da leitura de um livro de Philippe Beaussant, a arte, a ópera e a música barrocas tornam-se ainda mais geniais e fascinantes
Na numerosa e debatida bibliografia a respeito do barroco, existe um livro essencial. Editado há quase quatro décadas, teve presença discreta nos estudos sobre essa noção. Estou convencido de que ele contém o insight mais luminoso sobre a natureza intrínseca de uma categoria que cobre todas as artes do século XVII, incluindo a música.
Nem Weisbach, nem Wölfflin, nem Focillon, nem Tapie, nenhum dos grandes teóricos da questão chegou tão fundo a ponto de encontrar as chaves explicativas definitivas como esse ensaio de 133 páginas a que me refiro.
Foi escrito por um musicólogo, Philippe Beaussant, falecido em 2016, fundador do Centre de Musique Baroque de Versailles e referência no que concerne a Jean-Baptiste Lully.
Seu pequeno livro sobre o barroco tem um título que me parece ingrato: Versailles. Opéra. Entre outras heresias, ele demole uma velha noção tácita entre os franceses, a ideia de que a França é “clássica”, cartesiana (como se Descartes não pudesse ser percebido como filósofo “barroco”), regrada e contida, em oposição a uma Itália exuberante, passional e impulsiva.
Beaussant concebe a produção artística de um período como a configuração de suas ambições. “Cada cultura, cada época, modela a obra construída segundo a imagem de seu desejo. É a forma que ela gostaria de dar ao mundo para viver nele.”
Esse princípio da arte como desejo é basilar, porque escapa às dimensões da racionalidade conceptual, mesmo quando… a deseja: “No alumínio e no vidro polido, a arquitetura de hoje conta o que seria um mundo verdadeiramente perfeito, no qual o destino dos homens, inscrito em retas e elipses, em leis e sistemas sem exceções, seria liso, rigoroso, compacto, quantificável, estruturável, otimizável”.
Beaussant parte de um poema de Desmarets (1594-1653), no qual há um castelo. O autor comenta: “Qual palácio é esse que se desdobra sob a lua, que se desdobra outra vez no reflexo das águas, mais belo sendo reflexo, imagem, sonho? Qual é esse mundo ao contrário, mais sedutor do que a verdade? O poeta desdenha o palácio, preferindo sua sombra; à sombra prefere o reflexo, e ao reflexo, o sonho”.
O barroco, assim, almeja, deseja e percebe o mundo como um universo de ilusões onde está confinado. Ou seja, o mundo barroco é um teatro. Estamos aqui muito além da noção de estilo. É um modo de ser, no sentido de que ser é aparecer.
As páginas em que Beaussant descreve o homem barroco são de uma profundidade propriamente inaudita. “O homem barroco é aquele para quem o ser e o parecer se confundem. Somos o que parecemos. (…) O que é um homem nu? Não é um homem: é preciso estar vestido para aceder a essa dignidade (…). A era barroca é a única, sem dúvida, na qual a roupa masculina triunfa sobre a da mulher em ebulição, em voo de plumas, em farfalhar de fitas, em cascatas de rendas, e na qual a cabeleira natural pareceu indigna (…). Sua dignidade (do homem) consiste em polir a natureza e orná-la: se a natureza é andar, o homem barroco dança; se a natureza é falar, o homem barroco se quer eloquente. (…) Eis por que não digo que o barroco prefere o ser ao parecer: o parecer e o ser devem coincidir; mas num sentido contrário àquele que entendemos. Não cabe à aparência fazer-se límpida e transparente para que a verdade, que ela recobre, possa ser vista sem obstáculo: cabe ao ser bruto elevar-se à dignidade do ornato e identificar-se a ele. (…) Assim, cabe ao ser identificar-se à necessidade do parecer, e não o contrário.”
Inversamente ao ser, o parecer é mutável. Mas, ao mudar, o parecer identifica-se a um ser que depende dessa mutação. O ser barroco está mergulhado num fluxo: o fluxo da aparência. A ordem social depende do aparecer: da mesma maneira que o rosto comunica com a máscara, porque ele é máscara e rosto ao mesmo tempo, o gesto, o lugar, o deslocamento dependem de uma encenação, pois o mundo é (no sentido mais profundo de ser) teatro.
A corte de Luís XIV parece uma encenação de ópera, e a ópera mostra-se como corte, porque há uma osmose entre as duas.
Esse extraordinário livro de Beaussant não foi até hoje traduzido em português. Perdemos muito com isso. Depois de sua leitura, a arte, a ópera, a música barrocas, tão geniais e fascinantes, tornam-se ainda mais. Podemos assistir a uma ópera barroca seguindo a trama, personagens, seguindo o libreto ao pé da letra. Mas podemos entendê-la num plano simbólico e arquetípico. É a isso que o pequeno livro de Beaussant nos conduz.