Instituto Baccarelli completa 20 anos investindo em um fazer musical de qualidade, aliado à formação de cidadãos
No dia 18 deste mês, a Orquestra Sinfônica Heliópolis realiza mais um concerto de sua temporada na Sala São Paulo, sob regência do maestro titular Isaac Karabtchevsky. A despeito do habitual empenho dos jovens músicos, este será um concerto para lá de especial, pois marca os 20 anos de atuação do Instituto Baccarelli, o que não é pouco: trata-se de um dos mais bem-sucedidos projetos de inclusão social por meio da música surgidos no Brasil nas últimas décadas. É certo que o maestro Silvio Baccarelli estava longe de imaginar o efeito transformador de seu ato inicial, movido por um momento de comoção: o impacto provocado por um incêndio que destruiu parte da favela de Heliópolis, a segunda maior da América Latina. Ele procurou colaborar de alguma forma e, dono de uma empresa que realizava música em casamentos, montou um pequeno núcleo para ensinar crianças de uma escola pública da região. Como o bairro da zona sul paulistana não dispunha de local apropriado para as atividades, o maestro cedeu o próprio imóvel, o Auditório Baccarelli (na Vila Clementino). Outros profissionais se sensibilizaram com a causa, e logo um grupo de 36 crianças e jovens passou a ter aulas de música. De lá pra cá, muita coisa aconteceu, e o crescimento do projeto foi notável: atualmente, 1.300 crianças e jovens são beneficiados pelos programas socioculturais, que abrangem cinco orquestras, treze corais, vinte grupos de musicalização, seis grupos de câmara e duas cameratas.
O maestro Baccarelli está hoje afastado das atividades, e dois de seus ex-alunos tocam a empreitada, os irmãos Edilson e Edmilson Venturelli. Edmilson é o diretor de relações institucionais, e Edilson, o regente titular da Sinfônica Juvenil de Heliópolis. Ambos cuidam da gestão executiva. Edilson conta que conheceram o maestro há 39 anos, pois seus pais cantavam no antigo Coral Baccarelli, o qual chegaram inclusive a frequentar. Desde 1998, estão à frente do instituto e foram os grandes responsáveis por aquilo em que o projeto se transformou.
Edilson enumera o que ele considera os momentos-chave da trajetória da instituição. O primeiro deles foi no ano 2000, com o final da institucionalização do Baccarelli e o início da possibilidade de captação de verbas via Lei Rouanet. Em 2005, dois grandes acontecimentos deram impulso à iniciativa: o primeiro foi a mudança para Heliópolis, numa antiga fábrica de sucos, com o intuito de participar mais ativamente da vida da comunidade. Nesse mesmo ano, um visitante ilustre daria visibilidade inédita ao projeto: o maestro Zubin Mehta. “O Instituto Votorantim, que já nos patrocinava naquela época, ofereceu alguns ingressos para a Filarmônica de Israel. Sugerimos que convidassem o maestro para vir aqui e, para a surpresa de todos, ele aceitou”, relembra Edilson. “A vinda do maestro Mehta fez com que as pessoas descobrissem que o instituto existia, principalmente a mídia. Um nome como o dele valorizando nosso trabalho foi um reconhecimento importantíssimo. No dia seguinte, nossa visibilidade já era outra”, diz o maestro.
Em 2009, outro momento fundamental: a inauguração da sede própria, que foi construída graças ao auxílio da Pró-Vida, na Estrada das Lágrimas, em Heliópolis. No ano seguinte, a primeira turnê internacional da Sinfônica Heliópolis, sob direção do maestro Roberto Tibiriçá, à época diretor artístico do conjunto. O convite veio do tradicional Festival Beethovenfest, no qual fizeram duas apresentações. A oportunidade surgiu a partir de uma parceria com o Mozarteum Brasileiro, e o que era para ser um par de apresentações se transformou numa turnê europeia devido a uma série de outros convites.
Edilson pontua ainda outro acontecimento importante: a chegada do maestro Isaac Karabtchevsky, que passou a integrar o projeto a partir de 2011. “Quando fui convidado por Edilson e Edmilson Venturelli para a direção artística do Instituto Baccarelli, pensei numa experiência pacífica em solo pátrio, cercado de violinos chineses e trompas de bocal duvidosos”, conta o maestro. “O primeiro impacto veio com a apresentação do local: dois edifícios de cinco andares, várias salas de ensaio, um andar dedicado à administração e constituído de jovens idealistas (sei que o salário não era motivação para nenhum deles). Em suma, fiquei eufórico!”, relembra. O maior envolvimento de Karabtchevsky é com a Orquestra Sinfônica Heliópolis. “A transição entre euforia e exaltação se deu após o primeiro encontro com a orquestra, naquele momento confrontada com nada menos que a Segunda sinfonia de Gustav Mahler. O que mais me atingiu foi a paixão, o arrebatamento, a alegria do contato com a obra, o senso da descoberta.”
O grande objetivo da Sinfônica Heliópolis é promover a prática orquestral e o conhecimento de repertório sinfônico a alunos de nível avançado na instituição. Trata-se de fato de uma orquestra de estudantes, que não conta com músicos profissionais nem mesmo como chefes de naipe. Os estudantes aprovados na seleção de vagas para a sinfônica, quando não são ainda participantes do instituto, passam a fazer parte dele e frequentar as aulas e os ensaios. Quando o repertório pede mais instrumentistas do que a orquestra possui, a primeira opção é convidar ex-alunos que hoje atuam em orquestras profissionais. Ainda assim, profissionais, ex-alunos ou não, sentam-se nas últimas fileiras. A ideia, segundo Edilson Venturelli, “é deixar que os jovens estudantes assumam o máximo de responsabilidade pelo resultado final”. O maestro Karabtchevsky não poupa entusiasmo ao descrever o trabalho desenvolvido com a orquestra. “Eu sabia que a afinação, o fraseado e a técnica mais precisos viriam em nosso trabalho conjunto. Desde então, mesmo tendo cedido alguns músicos para outras orquestras, daqui e do exterior, esse sentimento jamais me abandonou. Julgo-me parte de um processo – nada a ver com as expressões habituais que permeiam a existência de projetos análogos, inclusão social, resgate da identidade etc. Estamos, sem falso patriotismo, erigindo parte desse Brasil que poderá dar certo.”
A Orquestra Sinfônica Heliópolis é a principal agente de difusão das ações do instituto e se configura atualmente como uma das grandes sinfônicas brasileiras, independente de ser um conjunto estudantil. Ela é também uma das conquistas de que o projeto pode se orgulhar, ao lado dos milhares de alunos que por ali já passaram. A sede atual do instituto chama atenção de qualquer um que percorre a Estrada das Lágrimas. Simples e funcional, o edifício foi planejado de forma adequada ao estudo musical, contando com salas com isolamento acústico para aulas individuais, ensino coletivo ou, ainda, ensaio para grupos de câmara e orquestras. Uma visita revela algumas crianças e jovens num clima leve e alegre nos corredores e nos espaços de convivência, bem como outros concentrados em estudos individuais ou em grupo. Eles são uma pequena parte dos 1.300 alunos atendidos atualmente pela instituição, que conta com mais de setenta profissionais especializados no campo musical, bem como com uma estrutura de apoio que inclui psicólogos, o Buscarelli – ônibus que circula pela comunidade levando e trazendo os alunos – e um jornalzinho que informa sobre atividades culturais do instituto e de outros locais de Heliópolis.
Há outros projetos vitoriosos voltados para a inserção social de jovens por meio da música, como o Guri, em São Paulo, e o Neojiba, na Bahia. No entanto, são iniciativas sustentadas quase exclusivamente por verbas governamentais diretas. Em Heliópolis, ao contrário, o Instituto Baccarelli, entidade civil sem fins lucrativos, sustenta-se com patrocínio da iniciativa privada, em boa parte via leis de incentivo à cultura. “O lado bom da parceria com a iniciativa privada é que isso nos deixa mais livres para fazer as coisas sem interferências”, afirma o maestro Edilson. Contudo, há outras dificuldades a ser contornadas, e uma delas é justamente a incerteza da continuidade dos apoios, bem como uma busca contínua por novos patrocinadores. Edilson explica que o instituto passou por dificuldades nos últimos três anos, sendo necessária uma reestruturação, com o enxugamento do quadro administrativo. Em 2016, no entanto, as contas foram equilibradas – o Instituto Baccarelli trabalha com um orçamento anual de R$ 9 milhões. Solidificar e incrementar a base financeira do projeto é, portanto, um dos desafios para os próximos anos.
Outro deles é terminar a instalação da sede, o que inclui alguns acabamentos e a construção de um teatro de seiscentos lugares, previsto no projeto original e cujas fundações já existem. “Mais do que trazer o público de concertos para ver os músicos de Heliópolis, queremos que esse teatro seja apropriado pelos próprios moradores, que passariam a acompanhar mais de perto o trabalho dos músicos e dos estudantes da comunidade e teriam mais uma opção cultural”, explica Edilson.
Estes dois objetivos – a robustez financeira e a finalização da sede – permitiriam a concretização de outro desejo: atender, no limite das instalações físicas do instituto, a 2 mil alunos simultaneamente. Isto significaria um enorme salto no número total de participantes.
O maestro Karabtchevsky resume um desejo que parece ser comum a toda a equipe: “Não é a Sinfônica Heliópolis a única a fazer parte de meus sonhos. Penso na construção do teatro, cujos alicerces já estão plantados na parte posterior do instituto e que será um espaço propício à difusão cultural, atendendo à comunidade de Heliópolis com concertos e óperas. Sonho com a multiplicação de projetos, com a maior ampliação do espaço no sentido de atrair não só os jovens da comunidade, mas de ser referência para todo o país, absorvendo e estimulando uma geração mais sólida e profícua de talentos musicais”.