Tradição e inovação

por João Luiz Sampaio 01/09/2017

O compositor Krzysztof Penderecki, que vem ao Brasil para reger a Osesp em setembro, relembra sua trajetória e defende o olhar pessoal como ponto de partida para a criação

Na Polônia dos anos 1950, o nome do compositor Karol Szymanowski estava particularmente associado a uma ideia de nacionalismo, que os primeiros representantes da vanguarda musical não viam com bons olhos. E o fato de que Krzysztof Penderecki, um deles, venha a São Paulo neste mês para reger o Concerto nº 1 para violino do compositor talvez seja uma oportunidade de discutir o modo como a história da criação no século XX foi vista – e é relida hoje. Da mesma forma, se nos damos conta de que o Hino a São Daniel e a Sinfonia nº 4 do próprio Penderecki, obras nascidas para celebrar os 850 anos de Moscou e os 200 anos da Revolução Francesa, completam o programa, o tema para a conversa parece claro: como, em sua trajetória, a inspiração sempre esteve associada a sua percepção de episódios marcantes da história da humanidade.

[Divulgação / Marek Beblot]
[Divulgação / Marek Beblot]

Mas bastam alguns minutos de entrevista para que Penderecki nos relembre que seu trabalho como autor sempre esteve associado, acima de tudo, a uma maneira particular e pessoal de se relacionar, na hora de criar o novo, com a tradição. E que, aos 83 anos, continua sendo esse o filtro pelo qual ele observa o mundo e seu trabalho como músico. “Szymanowski é, sem dúvida, o maior compositor polonês depois de Chopin, e há muito a discutir a respeito disso. Mas esse concerto para violino foi o primeiro que toquei como violinista, na juventude, então regê-lo é muito emocional para mim, ainda mais com uma solista tão importante como a alemã Isabelle Faust”, explica. “E o que dizer de Moscou? Vivendo no Leste Europeu, viajar para o Ocidente era algo improvável. Nós íamos para a Rússia. Eu me formei musicalmente ouvindo as grandes orquestras daquele período. É algo que carrego no coração até hoje. Enfim, o que quero dizer é que você talvez tenha razão em tudo o que disse, mas o programa que vou apresentar com a Osesp é, acima de tudo, afetivo”, completa. “Não acha?”

RUPTURAS

Nascido em novembro de 1933, em Debica, cidade de menos de 40 mil habitantes no sudoeste da Polônia, Penderecki começou na música guiado pelo pai violinista. Depois da Segunda Guerra Mundial, mudou-se para Cracóvia, onde estudou no conservatório. Suas primeiras obras têm influência marcante da produção de Stravinsky, Anton Webern ou mesmo Pierre Boulez. Em 8’37”, por exemplo, de 1952, ele trabalha com o conceito de texturas; em Fluorescenses, criada um ano mais tarde, utiliza uma enorme seção de percussão, sendo considerado, no Festival de Donaueschingen, uma voz “provocativa e controversa”. A própria partitura da obra sugeria um novo universo musical: mais do que notas, Penderecki indicava “ideias sonoras”, deixando para o processo de interpretação boa parte do ato de criação, o que levou a aproximações com John Cage. “O que me interessa mais é libertar o som, indo além de toda e qualquer tradição”, disse em uma entrevista na época, deixando claro o que o guiava como artista. 

Em 1968, no entanto, ele estreou sua Paixão segundo São Lucas, na qual trabalhou durante cinco anos. Foi quando sua trajetória deu uma guinada – e não apenas musical. A temática da peça era simbólica da religiosidade do autor, mas sua presença no Leste Europeu comunista era também algum tipo de afirmação política que não passou desapercebida no Ocidente – e que ganhou ainda mais força quando 8’37” foi rebatizada de Trenódia para as vítimas de Hiroshima. No entanto, à preocupação religiosa estava associada uma linguagem musical que não hesitava em dialogar com o período barroco, com reminiscências de Bach como ponto de contato entre o desejo de vanguarda e a recuperação de um passado que, também no uso de melodias e harmonias mais tradicionais, não parecia um mundo a ser renegado. 

A entrada nos anos 1970 se dá sob o mesmo prisma: peças como a Sinfonia nº 2 levam adiante esse novo diálogo com o passado, em um processo que Penderecki definiria como fusão entre “tradição e inovação” – e uma tentativa de libertação com relação ao “pretenso universalismo” de uma vanguarda que, se por um lado significava a possibilidade de ir contra o discurso oficial do socialismo realista vigente no Leste Europeu, por outro “caminhava na direção de uma especulação formal mais destrutiva do que construtiva”. A experimentação, em outras palavras, tomada como um fim em si, deixava de fazer sentido para Penderecki. E, com a chegada dos anos 1980, a nova proposta estética encontraria eco em uma nova visão do mundo – e passaria a ser complicado separar uma coisa da outra.

SOFRIMENTO DE UM POVO

Representativo dessa simbiose é o Réquiem polonês, do início dos anos 1980. A obra surgiu como encomenda do Solidariedade, primeiro sindicato de trabalhadores poloneses não controlado pelo Partido Comunista, liderado por Lech Walesa, que logo ganharia protagonismo entre a resistência civil ao governo polonês, defendendo o direito dos trabalhadores e mudanças sociais profundas no país. A princípio, Penderecki escreveu o Lacrimosa, em homenagem aos trabalhadores mortos em protestos contra o regime nos anos 1970. Com o tempo, no entanto, adicionou novas partes, definindo a obra de maneira direta como “retrato do sofrimento de um país sob o regime soviético”. John Neschling, que convidou Penderecki para reger a estreia brasileira da obra com a Osesp em 2004, a tratou na época como símbolo bem-acabado da busca estética do compositor: “Ele é alguém que acredita, tem fé e quer compartilhá-la de maneira direta com quem ouve. Monumental na aparência, o Réquiem é de uma simplicidade tocante. Na mensagem, mais do que na busca desta ou daquela estética, ele centra seus esforços”.

O caminho da vanguarda em direção a uma música pautada pela busca de uma linguagem que resultasse de uma visão da história e do presente filtrada por um olhar pessoal costuma estar no centro da percepção que se tem da obra de Penderecki – nem sempre das melhores. Para alguns críticos, sua contribuição para a linguagem musical do século XX se encerra no final dos anos 1950; para outros, o tal “olhar pessoal” significou a criação de uma obra que dialoga apenas consigo mesma. Há espaço até para avaliações curiosas, como aquela em que a combinação entre tradição e inovação que sua obra propõe é conceitualmente um marco, ainda que as obras por ela inspiradas não mereçam grande atenção. Por outro lado, à medida em que, nas últimas décadas, a liberdade com relação a dogmas e a recusa da necessidade de filiação a uma escola estética se tornaram aceitas, Penderecki ganhou ares de precursor de um mundo criativo que, quando ele começou, era difícil de imaginar.

“O desejo de liberdade era compartilhado por minha geração. 
Ele nos aproximou da vanguarda, mas também me fez afastar-me dela”

Não é um posto, no entanto, que ele reivindica para si mesmo. “Acredito que, de alguma forma, compositores que vieram antes de mim, como Lutoslawski, já sinalizavam a direção a uma música essencialmente pessoal. Então, tenho dificuldade em me aceitar como precursor, ainda que reconheça que a liberdade que eu sentia naquele momento, nos anos 1970, hoje esteja disseminada como algo a ser celebrado”, diz. Em artigo recente no jornal O Estado de S. Paulo, o crítico João Marcos Coelho une Szymanowski e Penderecki afirmando que se inserem em um contexto mais amplo, de uma música que se distancia do cânone germânico e sua lógica interna, o que é resultado do que Milan Kundera chama de “esplêndido isolamento”, ou seja, do fato de que autores do Leste Europeu eram periféricos com relação ao establishment cultural europeu – e que, por isso mesmo, puderam estabelecer vozes únicas e originais.

Penderecki ouve o comentário com atenção. Concorda, mas em parte. Seu olhar é menos geopolítico. “Crescer naquele momento, sob o regime soviético, naquele contexto, não foi fácil. Descrever o processo de criação musical é uma tarefa que ainda hoje, aos 83 anos, me parece particularmente difícil. Mas o desejo de liberdade era compartilhado por minha geração. Foi ele que nos aproximou da vanguarda, mas foi ele também, no caso, que fez com que eu me afastasse dela. O desejo de ser livre, e poder criar a partir disso, era algo que eu sentia com força. Mas não acredito que a ruptura tenha sido consciente nem que carregasse algum tipo de afirmação política, ainda que exista quem leia minha obra dessa forma. Escrever música sacra na Polônia comunista, claro, era algo diferente, pois não era um repertório aceito, eu tinha plena consciência disso. No entanto, dediquei-me ao gênero não por um simples sentimento contestatório, mas, antes, porque aquilo fazia sentido para mim, um sentido forte o suficiente para me levar a essas obras.”

VANGUARDA

Penderecki questiona o uso atual do termo “vanguarda”. “Só faz sentido se for para designar um período específico da história, os anos 1950 e 1960”, explica. Hoje, ele diz que essa percepção já é mais aceita. “Durante muito tempo, o trauma da vanguarda esteve muito vivo, e isso eu não entendia. Sempre existiram compositores que abriram novos caminhos, mas esses são processos que na história da música duram vinte, trinta anos. No caso da produção dos anos 1950 e 1960, houve uma tentativa de prolongar uma hegemonia, o que hoje já me parece superado em favor de um diálogo com a história em que o novo passa pela personalidade de quem cria.”

Penderecki em imagem dos anos 1970 [Reprodução]
Penderecki em imagem dos anos 1970 [Reprodução]

A conversa retorna, então, para sua Sinfonia nº 4, que ele apresentará em São Paulo. Escrita para marcar os 200 anos da Revolução Francesa, ela já foi comparada às obras de Mahler. Mas Penderecki prefere entendê-la à luz de seu interesse pela forma. “Quando comecei na música, escrever sinfonias era algo totalmente fora de moda. Mas havia uma tradição gigantesca, que se misturava com a própria história da música, em sinfonias escritas nos séculos anteriores. E o que eu me perguntava era se fazia sentido abandonar a forma por completo. A resposta a que cheguei é que eu gostaria de ter o desafio da forma sinfônica como parte de meu trabalho criativo, mesmo que isso significasse repensá-la de alguma maneira. E esse processo continua até hoje. Já tenho oito sinfonias. Agora vou escrever a nona, que será com certeza a última.” Com algumas tradições, afinal, não importa em que espectro estético se está, é bom não brincar.

AGENDA
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
Krzysztof Penderecki
– regente / Isabelle Faust – violino
Dias 14, 15 e 16, Sala São Paulo