Governo afronta TV Cultura

por Nelson Rubens Kunze 28/04/2024

Ao invés de ameaçar a autonomia da Fundação Padre Anchieta e propor uma CPI oportunista, o governo faria bem em buscar novas alternativas para um financiamento mais robusto da instituição

No dia 20 de abril passado, Roberto Muylaert, presidente da Fundação Padre Anchieta de 1986 a 1995 – e que na época definiu paradigmas para as emissoras públicas brasileiras –, escreveu artigo na Folha de S. Paulo chamando a atenção para a interferência do governo Tarcísio de Freitas sobre a autonomia da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV e Rádios Cultura (“TV estatal não funciona”). Muylaert traça um histórico das crises que a instituição já enfrentou, lembrando de governadores como José Maria Marin (1982-83), que tentou estatizar a FPA “na marra”, e Orestes Quércia (1987-91), que tentou escolher ele mesmo a direção TV Cultura, “tendo ficado muito bravo quando soube que o cargo de presidente da diretoria executiva nada tinha a ver com o governo do estado, mas com o Conselho Curador da Fundação”. Muylaert afirma que o que estamos vivendo agora “é a clássica revolta do governador, sem compreender como é possível liberar verbas públicas para serem utilizadas por uma emissora independente e de direito privado, dirigida por uma diretoria executiva e um conselho curador, ainda que auditados pelo Tribunal de Contas”. Em um segundo momento, segue Muylaert, a relação costuma ser positiva, com o governo entendendo que as coisas dessa maneira podem funcionar bem.

Criada pelo governo do estado e instituída por de lei estadual em 1969, a Fundação Padre Anchieta tem personalidade jurídica privada, mas sua natureza é pública. Ela é mantida com repasses orçamentários governamentais e também com recursos próprios captados na iniciativa privada, muitos com isenção fiscal. Além disso, a Fundação gera receitas com licenciamentos e serviços para terceiros. 

As suas emissoras, a TV e Rádios Cultura, têm como objetivo oferecer uma programação de interesse público – educativa e cultural – , sem pressões comerciais ou político-partidárias. A independência político-partidária é justamente o que diferencia uma emissora de caráter público como a Fundação Padre Anchieta de uma emissora estatal diretamente ligada ao governo, que tem sua pauta dirigida pelos interesses do poder.

Para garantir a sua representatividade pública, a Fundação Padre Anchieta conta com um multifacetado Conselho Curador. Este é composto por 47 membros, entre eles autoridades do governo e de instituições (como secretários de Cultura do estado e do município, reitores das principais universidades paulistas, presidentes da Fapesp, da SBPC e da UEE) e 23 pessoas eleitas da sociedade civil “dentre personalidades de ilibada reputação e notória dedicação à educação, à cultura ou a outros interesses comunitários”. 

Apesar de o modelo institucional da FPA ser simples e claro, a construção de uma emissora de caráter público com autonomia de programação e livre da ingerência da fonte de financiamento é um grande desafio. Mas há ótimos exemplos no mundo, como a PBS norte-americana ou a BBC inglesa. Conheço um pouco o modelo alemão, onde grandes emissoras públicas regionais são financiadas por taxas de televisão, patrocínios e também publicidade institucional – a preocupação sempre é a de blindar o financiamento dos interesses político-partidários. Essas emissoras alemãs ainda mantêm onze (!) orquestras sinfônicas de grande qualidade (Bayerischer Rundfunk Sinfonieorchester, Rundfunk Sinfonieorchester Berlin, NDR Elbphilharmonieorchester, MDR Sinfonieorchester Leipzig e a hr Sinfonieorchester para citar apenas cinco).

Mas há ainda outro texto importante em defesa da Fundação Padre Anchieta, publicado alguns dias depois pela professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap (e também membro do Conselho Curador da FPA), Maria Hermínia Tavares (“Uma TV pública que não pertence ao estado nem serve a governos”, Folha de S.Paulo, 24/04/2024). 

Tavares afirma que “criar organizações públicas não estatais, capazes de sobreviver até às grandes reviravoltas da política, foi ingrediente indispensável da pujança científica e cultural paulista” e cita como exemplo a Fundação Padre Anchieta (além da Fapesp, das universidades paulistas e da Osesp). 

O artigo de Tavares alerta para a proposta de criação da CPI da Fundação Padre Anchieta, iniciativa do Movimento Brasil Livre (MBL) junto com o deputado estadual Guto Zacarias (União Brasil), vice-líder do governo na Assembleia Legislativa de São Paulo. Zacarias sustenta que há falhas na condução orçamentária da Fundação e quer anular a eleição de conselheiros sob o argumento de que o estatuto da instituição teria sido desrespeitado. Tavares, por sua vez, afirma que a CPI não tem propósito definido e “se baseia em vagas acusações de mau uso de recursos públicos, quadro de funcionários balofo, eleições fraudadas”. 

A nova investida para a criação desta CPI se junta a uma tendência política neoliberal, que há anos pressiona a FPA a cortar gastos e a aumentar as receitas próprias. Ao invés de atacar a autonomia da instituição, o governo faria bem em buscar novas alternativas para um financiamento mais robusto da Fundação. 

É necessário defender o caráter público – educativo e cultural – da Fundação Padre Anchieta bem como a sua autonomia, para assim fortalecer uma das instituições mais valiosas e importantes do Brasil. É lamentável que visões equivocadas e manobras políticas ameacem este modelo de serviço público de comunicação de qualidade. Oxalá chegue logo o segundo momento previsto por Muylaert e o governo compreenda o inestimável valor de uma emissora pública como a Fundação Padre Anchieta!

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(Reprodução TV Cultura)
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Fui Conselheiro da Fundação Padre Anchieta por dois mandatos, na gestão do saudoso Jorge da Cunha Lima. As pressões do Governador e de sua equipe se fizeram sentir em várias ocasiões no período, e sempre foi importante a reação do Conselho e, particularmente do seu Presidente. Recomenda a leitura do livro O Desafio da TV Pública que aborda o tema.

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