Mezzo soprano Joyce DiDonato traz ao Brasil espetáculo em que reflete, a partir de árias barrocas, sobre a condição humana
Por que os homens deveriam brigar aqui/ onde todos possuem o quanto podem almejar.
Deixe-me chorar minha sorte cruel/ E suspirar pela liberdade!
Quando eu descer à terra, que meus erros não causem
tormento em seu peito.
Partituras dessas árias de Händel e Purcell viviam sobre o piano da mezzo soprano Joyce DiDonato – como deve acontecer com muitas das cantoras dedicadas ao repertório barroco. Até que, em uma noite de novembro de 2015, começaram a chegar pela televisão notícias a respeito de ataques terroristas na França, que deixariam 35 pessoas feridas e 180 mortos em Paris e Saint-Denis.
“Eu estava montando um projeto naquele momento, mas acabei mudando completamente os planos”, conta DiDonato em entrevista à Revista CONCERTO. “Senti que precisava falar de maneira mais direta sobre o mundo em que eu estava vivendo, e o tema da guerra e da paz surgiu em minha mente. Olhei aquela pilha de árias em cima do piano, todas elas falando da guerra e de tormentos internos e da busca pela serenidade. E soube, naquele instante, que precisava cantar sobre aquilo.”
Surgia então In War and Peace: Harmony through Music (Na guerra e na paz: harmonia através da música), projeto em que DiDonato e o conjunto Il Pomo d’Oro apresentam uma série de árias barrocas que permitem uma reflexão sobre o tema. Ele virou CD, premiado com o Grammy, o Echo Klassik e uma série de recitais (neste mês, ela e a orquestra vêm ao Brasil para apresentar o programa na série da Cultura Artística). Mas não só. Um site também foi criado especialmente para que as pessoas de todo o mundo pudessem responder à pergunta: “Em meio ao caos, como você encontra paz?”.
Falar de seu tempo não é novidade para Joyce DiDonato. Em sua conta no Twitter, rede em que é bastante ativa, ela não só revela seu cotidiano como artista, mas defende a luta pelos direitos humanos ou os direitos LGBT e recentemente uniu sua voz à da mezzo soprano Jamie Barton, que tem tratado abertamente sobre o preconceito do mundo da ópera com relação à forma física dos cantores. Em entrevista recente ao jornal The Observer, contou também que tira a inspiração para papéis de todos os lugares, até mesmo de séries, como House of Cards. E emendou: “Em minha vida, o que tento é encontrar um equilíbrio entre o ativismo e a alegria”.
A seleção de árias de In War and Peace é fascinante. Cada uma delas remete a uma ópera em que a política é personagem fundamental. Juntas, no entanto, elas contam uma história na qual o enredo é a própria natureza humana. Unindo uma coisa à outra, será que falar do ser humano é, em si, um ato político? Ou então: toda a arte é política? Não é uma resposta fácil, ela acredita. “Eu diria talvez que toda arte é pessoal e, muitas vezes, a vida pessoal de um artista pode refletir o mundo a sua volta, levando o ouvinte ao universo da política. Mas não acredito que toda arte seja inerentemente política. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que muitos eventos que transformaram a história da humanidade foram liderados pelos artistas e pelo mundo da cultura.”
No entanto, o fascínio de War and Peace tem a ver também com a maestria de DiDonato perante o repertório barroco, do qual extrai coloridos incríveis. Ela lembra que em seu dia a dia sempre quis a diversidade, incluindo o bel canto e a música francesa, assim como entendendo o universo das canções da forma mais ampla possível (seu disco de canções americanas acompanhada ao piano por Antonio Pappano é precioso). Contudo, ela busca, acima de tudo, o equilíbrio. Um exemplo: nos últimos anos, moveu-se em direção a papéis mais pesados, como a Charlotte, no Werther de Massenet; e, agora, prepara-se para estrear como Agrippina, na ópera de Händel. “Sempre dou um jeito de fazer com que um novo papel, que signifique uma expansão de repertório, esteja ao lado de outro, novo ou não, que me leve de volta a minhas raízes de Händel, Mozart ou Rossini. Isso tem me permitido aprofundar minha relação com esses autores fundamentais e, ao mesmo tempo, expandir e crescer de maneira marcante.”
DiDonato tem atuado bastante como professora. Suas master classes na Juilliard School em Nova York, transmitidas pela internet, viraram febre entre jovens artistas – e chamam atenção em especial pela generosidade com que lida com os alunos, talvez num reflexo do fato de que, no começo, ela tenha encontrado mestres difíceis, que muitas vezes recomendaram a ela não seguir carreira como cantora.
“Para mim é quase impossível resumir a quantidade de conselhos que se pode dar a um jovem cantor”, diz. “Mas alguns destaques incluem: o domínio da técnica, pois ela é simplesmente a base de qualquer desejo expressivo que possamos ter; o fato de que a imaginação talvez seja a habilidade mais importante que um cantor pode desenvolver quando ao preparar um repertório; e a necessidade de ter certeza de por que você resolveu cantar e para que exatamente pretende usar a voz. Essa é uma vida cansativa e incrivelmente exigente e, quanto mais claros e comprometidos estamos, mais simples torna-se a jornada.”
AGENDA
Joyce DiDonato – mezzo soprano
Il Pomo d’Oro
Dias 22 e 23, Sala São Paulo