A sagração do sul

Festival Ecos Latinoamericanos traz a São Paulo repertório vizinho, mas pouco tocado

Recentemente as redes sociais do premiê alemão Friedrich Merz sofreram uma enchente de comentários brasileiros. O fenômeno tem a ver com a fala que o representante cometeu na última segunda-feira, quando expressou alívio seu e de seus jornalistas ao voltar de Belém – ele estava de visita durante a COP30. 

O desprezo europeu por tudo o que é latino-americano (ou, melhor dizendo, estrangeiro) não é novo, e, a bem da verdade, o comentário do chanceler só é “gafe” porque foi dito em público. No país da COP, o misto de afetos provocado pela fala transita entre a vergonha de quem defendeu que a cúpula ocorresse num estado melhor preparado e o ultraje dos anfitriões (cuja expressão máxima está estampada nas centenas de comentários das redes de Merz).

Entre envergonhados e ultrajados, visões de Brasil: há aqueles compatriotas que veem o país como projeto em construção (e inspiram-se no que há para lá do Atlântico); há também aqueles que, ao invés, procuram nas entranhas do território (e dos territórios vizinhos) uma identidade para além das ideologias do progresso. Pode parecer contraditório, mas há intersecções possíveis entre essas suas perspectivas. E, como é comum na arte, a música pode oferecer bons exemplos nesse sentido.

Por essas e outras razões vem em boa hora o banho de latino-americanidade que São Paulo passará a receber a partir de hoje, dia 19. Começa o Festival Ecos Latinoamericanos, evento em que Mozart é exceção numa programação recheada de obras peruanas, venezuelanas, bolivianas, argentinas, paraguaias, mexicanas, cubanas, colombianas, chilenas e brasileiras. 

O projeto do festival, que terá apresentações na Motiva Cultural e no Sesc Belenzinho, além de ocupar também a Pinacoteca e o Minhocão, traz para o centro do debate questões delicadas que tocam a prática da nossa música. Onde e como encontrar essa “tal” identidade própria, e o que essa identidade tem a ver com o aquilo que vem de fora? O que temos em comum, em termos estéticos, com nossos países vizinhos? Essas e outras indagações animam o evento, como ressalta seu diretor executivo, o trompetista Bruno Lourensetto. “Somos brasileiros frustrados por essa desconexão, caracterizada pela baixa autoestima em relação a países da Europa e dos Estados Unidos. Esse projeto vem de uma necessidade de aproximação”, observa.

A seleção do repertório, curado pela diretora artística e clarinetista Camila Barrientos, conta com nomes conhecidos, como o de Alberto Ginastera e Heitor Villa-Lobos, além de outros que merecem ser mais tocados, como o do mexicano Silvestre Revueltas – Sensemayá já foi tocada pela Osesp, mas será que Caminando já soou em terras brasileiras? “São Paulo já tem oferta suficiente de música de concerto tradicional, e por isso decidimos apostar numa programação mais plural, incomum de ouvirmos por aqui”, aponta Barrientos.

Dentre as 16 apresentações, alguns destaques: o primeiro é o programa em homenagem à cantora e compositora chilena Violeta Parra, figura fundamental no movimento da Nueva Canción Latinoamericana dos anos 1960. O concerto acontece no dia 27 e trará ao palco instrumentos como o charango (de cordas, tocado por Álvaro Quisbert) e a quena (de sopro, tocada por Mauro Ciavattini). 

Será também uma boa noite para ouvir a obra da recém vencedora do Grammy Latino Gabriela Ortiz, de quem o Ensemble Ecos (responsável por dar vida à programação do festival) toca Seis piezas para Violeta. “Esse programa passa pela questão política e evoca Violeta Parra como a voz que representa a opressão vivida, além da esperança por uma união contra mazelas sofridas no passado e hoje”, aponta Lourensetto, que dá destaque para Charagua, de Victor Jara, cuja melodia se tornou um dos hinos da resistência chilena durante a ditadura ocorrida no país.

Violeta Parra certamente ecoa na voz da peruana Susana Baca (também indicada ao Grammy Latino deste ano), que é atração principal do festival e participará de vários concertos ao longo da programação, dentre eles um dedicado inteiramente a bebês, dirigido por Carmen Orofino, especializada em educação infantil com enfoque em música e movimento.

Outro destaque é o programa do dia 29, que oferece uma dobradinha de concertos. Às 17h, os pianistas Sergio Escalera e Erika Ribeiro trazem um repertório singular para piano a quatro mãos – a ponto de a Sagração da Primavera (em arranjo para a formação, fechando o programa) arriscar passar batida. Acompanham Stravinsky obras de Carlos Aguirre, Rudi Flores e Manuel Rodriguez, entre outros. Já às 20h30, uma encomenda: a Suíte Migração, escrita por Elodie Bouny e Livia Mattos, faz parte de um programa que dá enfoque às questões migratórias.

A diretora artística Camila Barrientos é boliviana e trabalha como primeira clarinetista do Theatro Municipal de São Paulo. Como musicista latino-americana de alto nível, ela ressalta como os músicos do Ensemble Ecos – no qual ela, assim como Bruno Lourensetto, está incluída – estão confortáveis tanto com o repertório canônico quanto o contemporâneo, e, neste caso, o latino-americano. “A beleza é que a música não deixa de ser universal. Ela se integra de uma forma natural. Eu amo Mozart e é por isso que ele estará na programação. Mas também amo tocar Paquito D’Rivera. A música possibilita integrar mundos diversos mantendo as características de cada um”, defende.

Parte dessa experiência o público poderá presenciar durante as Saideiras, que ocorrerão após cada concerto “oficial” na Estação Motiva. Há uma programação definida (o concerto de hoje, por exemplo, contará com uma saideira dedicada à música cubana), mas Barrientos não espera uma sucessão tradicional de peças. “Há saideiras que ainda não escolhemos. Queremos experimentar, ver o que acontece, improvisar. Esse perfil é muito próprio do músico latino-americano. O mundo erudito poderia aprender com essa espontaneidade que, no final, tem um resultado artístico rico”, defende. Um piquenique no vão livre da Pinacoteca do Estado de São Paulo e uma apresentação no Minhocão, no centro da cidade, completam as inovações da programação. 

O Ensemble Ecos é codinome para o La Sociedad Boliviana de Música de Cámara, cujos 10 anos de atuação são marcados pela promoção de festivais na Bolívia. O último, ocorrido em 2023, promoveu a encomenda da quinta ópera da história do país. Matilde, en las ojeras de la noche estreou no Teatro Gran Mariscal, em Sucre, com libreto escrito em ampla colaboração em homenagem à poetisa e compositora boliviana Matilde Casazola, com música de Cergio Prudencio. Outras iniciativas integram as atividades do grupo, como um programa para jovens talentos.

A Alemanha pode ser o país mais bonito do mundo, como defende Friedrich Merz, mas é sobre o tapete verde que forra a úmida e quente floresta amazônica que se debruça a COP30 – politicamente, simbolicamente e, durante novembro, fisicamente também. Discute-se o passe para os próximos séculos – e estamos nós segurando o tíquete. Diante disso, o Festival Ecos Latinoamericanos propõe uma excelente trilha para que não nos deixemos abalar durante os próximos passos.

Ensemble Ecos [Divulgação/Facundo Dasio]
Ensemble Ecos [Divulgação/Facundo Dasio]

 

 

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