Compositor explora alternância entre o canto, o canto falado e a própria fala para criar instigante espetáculo cênico-musical, quase um “teatro-ópera”
Estreou na última sexta-feira, dia 7 de novembro, na abertura da 13ª edição do Festival de Música Erudita do Espírito Santo, a ópera A profissão da senhora Warren, de Maurício de Bonis. O trabalho é baseado na peça de mesmo nome escrita pelo dramaturgo irlandês Bernard Shaw no fim do século XIX, que causou grande polêmica e acabou censurada por 10 anos, tendo sido apresentada apenas em 1902. E, de certa maneira, os dilemas que o texto aborda seguem atuais até hoje.
A peça trata de temas como a hipocrisia social, a moralidade e a condição da mulher na sociedade. A jovem Vivie Warren, de 22 anos, que frequentou a faculdade e é decidida, racional e independente, descobre que a fortuna de sua mãe, que sempre a manteve mas com quem praticamente nunca conviveu, vem da administração de “hotéis”, na verdade, prostíbulos. Mais do que um drama familiar, a peça é um retrato agudo da época, que condenava as mulheres e lhes negava qualquer alternativa digna de sobrevivência. Com diálogos afiados e uma crítica social contundente, Shaw transforma o confronto entre mãe e filha em um espelho de tensões como entre o idealismo e o pragmatismo, a moral e a necessidade de sobreviver, a aparência e a verdade.
Apesar de supressões necessárias, pela extensão da peça, o libreto da nova ópera, criado colaborativamente por Livia Sabag, Eliane Coelho, Gabriel Rhein-Schirato e pelo próprio De Bonis, resultou consistente e bem fiel ao texto de Shaw.
A música de Maurício de Bonis, que é formado pela USP e hoje é professor livre-docente do Instituto de Artes da Unesp, é escrita para uma ampla orquestra, que inclui harpa e contrafagote, e foi executada com convicção e competência pela Orquestra Sinfônica do Espírito Santo, sob direção do maestro Gabriel Rhein-Schirato. Não pense que é coisa fácil. A escrita é atonal e intrincada e a música não é de audição fácil. Não há ambiências sonoras ou comentários à narrativa – a música é protagonista e, ainda que em diálogo com o texto, autônoma.
Mas o elemento decisivo na concepção do compositor foi a criação de um quase “teatro-ópera”, em que ele explora de forma muito hábil a alternância entre o canto, o canto falado (Sprechgesang) e a própria fala. Com isso, o texto e o teatro assumem predominância, enquanto a música ganha liberdade para funcionar em outro plano, paralelo. E os vários níveis de tensão do drama ainda são potencializados pela maneira como são expressos: cantados, canto-falados ou falados. No todo, a malha sonora é de construção ambiciosa e exige grande concentração dos executantes. O resultado é um instigante espetáculo cênico-musical, que logra manter a tensão do drama – e a atenção do público.
Coube aos cantores a difícil tarefa de alternar constantemente entre o canto e a fala teatral, o que também exige uma grande desenvoltura de palco. E foi excelente a atuação dos solistas. O destaque, pelo magnetismo de sua atuação cênica e vocal, foi a veterana soprano Eliana Coelho no papel de senhora Warren. Vivie Warren foi feita pela soprano Carla Cottini, com boa presença e formando com Eliane uma combinação muito adequada como mãe e filha. Foram bem convincentes também as atuações do barítono Idaías Souto como Praed, do tenor Mauro Wrona como Crofts e do tenor Paulo Mandarino no papel do reverendo Samuel Gardner. O tenor Rafael Stein fez o papel do galanteador Frank.
Foi um prazer ouvir a música moderna ambientada na encenação “de época” concebida e dirigida por Livia Sabag, invertendo o que normalmente se vê hoje (nada de planos inclinados, luzes dramáticas ou conceitos minimalistas). A encenação é simples, até porque o palco do Teatro Sesc Glória não dispõe de um grande recuo e nem de coxias. Bonitos cenários preparados por Nicolás Boni – um painel no fundo do palco com uma paisagem inglesa do século XIX ou o interior de um antigo escritório – remetem à época vitoriana e combinam com os caprichados figurinos desenhados por Fabio Namatame.
Como o teatro não tem fosso, a orquestra ocupou as primeiras filas da plateia. Com isso, especialmente no primeiro ato bastante denso em termos instrumentais, cantores ficaram um pouco encobertos pelo som orquestral. Mas De Bonis é criativo no tratamento instrumental, com novas soluções para cada cena. Assim, o segundo ato já traz uma transparência muito maior, por vezes com a utilização de apenas um instrumento. Um dos pontos culminantes da ópera acontece justamente no segundo ato, quando, quase como em um monólogo, a senhora Warren conta finalmente para a filha sobre a sua infância e juventude.
A ópera termina de modo um pouco apático – tanto na ação como na música –, apesar do rompimento definitivo entre mãe e filha que se dá naquele momento. No fim, parece mesmo que só há uma saída para seguirem a vida, cada uma por si na aceitação daquela sociedade hipócrita. Como diz a senhora Warren em sua última intervenção, “que Deus proteja o mundo se todos se dispuserem a fazer o que é direito”.
A profissão da senhora Warren é a quarta encomenda de ópera do Festival de Música Erudita do Espírito Santo. Com essa iniciativa de resultados sempre muito positivos, o Festival, que tem direção geral de Tarcísio Santório, direção executiva de Natércia Lopes e direção artística de Livia Sabag, contribui de forma importante para a promoção da atividade lírica brasileira.
(A ópera foi transmitida ao vivo pelo YouTube – clique aqui para assistir.)
[Nelson Rubens Kunze viajou a Vitória e assistiu à ópera A profissão da senhora Warren a convite do Festival de Música Erudita do Espírito Santo.]
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