Flavio Silva

por Jorge Coli 01/11/2019

O musicólogo e pesquisador, membro da Academia Brasileira de Música, morreu em outubro, aos 80 anos

Escrevo na tristeza por ter perdido um grande amigo. Morreu Flavio Silva, dormindo. Nossa amizade foi muito forte, feita de música. Só falávamos e escrevíamos sobre música. A última mensagem que lhe enviei, no dia 8 de outubro, ficou sem resposta.

Uma das qualidades de Flavio era sua honestidade e sua franqueza direta. Dizia o que pensava, não se preocupando com consequências. Criticava sem delicadezas. Numa palestra que dei de improviso, nada boa, ele comentou: “Você se embananou todo”.

Flavio nunca se punha em primeiro plano. Agia por puro e sincero amor à música. O muito que fez por ela está em seus necrológios oficiais.

Eu insistia para que escrevesse um livro sobre notação musical. A distinção essencial sobre a música dita “clássica” e a popular – uma é escrita e a outra não – merecia o aprofundamento que sua imensa cultura e sua inteligência podiam oferecer. Tinha insights fulgurantes e exigências rigorosas no controle dos dados. Ficou devendo o livro prometido. 

Em sua homenagem, e para proveito dos leitores, transcrevo aqui o trecho de um e-mail que me enviou, inédito, respondendo a um comentário meu sobre um ensaio que escrevera, antes de sua publicação. 

“Jorge, é confiança, mesmo. Aliás, você às vezes me parece um confidente.

Flavio Silva [Divulgação / Funarte]
Flavio Silva [Divulgação / Funarte]

Talvez eu não tenha frisado o suficiente a ideia central de descontinuidade inaugurada pelo cantor que inventou traçar uma linha horizontal sobre neumas descontínuos e ondulados, com a finalidade de tornar mais fácil a leitura de neumas. O gesto desse cantor estabelece a ruptura, o corte, a descontinuidade com tudo o que foi antes praticado em termos de notação, seja na Europa, seja na Ásia, seja entre árabes; confirmação da ruptura veio com o traço de uma linha paralela à original, e assim por diante. A notação deixa de ser registro para se transformar em ferramenta de criação. 

Não teve continuidade a superposição gráfica de linhas melódicas figurada pela primeira fez na história pelo douto autor do Musica enchiriadis, e m sua pré-figuração de pauta com múltiplas linhas. Foi a continuidade proporcionada pela ruptura trazida pela sucessiva superposição de linhas paralelas sobre neumas ondulados descontínuos que abriu caminho para que signos neumáticos com diferentes formas e significados passassem por um processo de simplificação e de individuação que levou à notação quadrada etc., inclusive incorporando a representação não só de alturas melódicas, mas também de durações a partir de princípio de variação de signos básicos já encontrado em notações neumáticas. Esse processo não foi planejado – ele foi sendo viabilizado à medida que se viabilizava.

Vejo a notação neumática como uma continuidade de processos anteriores, embora calcada num princípio de espacialização gráfica da representação de sons graves e agudos – muito embora esse princípio também apareça naquela notação ondulada japonesa e nas notações tibetanas que mostro. Reitero, porém, que essas duas notações são em linhas onduladas contínuas, não descontínuas, e que só as ondulações descontínuas parecem possibilitar a ideia de sobre elas traçar uma linha horizontal que receba o nome de uma nota e possibilite a mais fácil identificação das notas acima e abaixo dessa linha. O traçado dessa primeira linha é claramente um artifício, a partir do qual parece ‘natural’ traçar uma outra linha a ela paralela, e assim sucessivamente, com as ‘naturais’ decorrências e consequências assinaladas.

A descontinuidade que vejo na ruptura instituída pela notação pautada europeia é algo que me parece ter caracterizado, também, a ciência, a filosofia e as artes em geral na Europa com relação a especulações análogas desenvolvidas em outras partes do mundo. 

Filosoficamente, parece-me difícil não ligar a ideia de separação corpo-alma, criador-criatura, herdeira de uma concepção dualista, a essa ideia de descontinuidade, oposta à de um monismo em que tudo está em tudo.

Não estou preocupado em descobrir nada. Essas ideias começaram a aparecer na minha cabeça a partir de experiências múltiplas que parece terem se desenvolvido sem muita dependência da minha vontade. Em especial, a filiação das coordenadas cartesianas à notação pautada, por mim estabelecida, me pareceu evidente depois de ler sobre o tratado musical de Descartes, sua primeira obra teórica, ou seja, a ideia dessa filiação não decorreu de nenhuma dedução – foi uma ‘ideia clara e distinta’, tributária de uma intuição fulminante (!!!).”

Abraço, Flavio 

“Nossa amizade foi muito forte, feita de música. Só falávamos e escrevíamos sobre música. Uma das qualidades de Flavio era sua honestidade e sua franqueza direta. Dizia o que pensava, não se preocupando com consequências. Nunca se punha em primeiro plano. Agia por puro e sincero amor à música.”