O trabalho da Fundação Aharonián-Paraskevaídis e o concerto secreto de Robert Treviño
Nairí, filha de Coriún Aharonián, um dos mais importantes compositores da América Latina, e Graciela, sua parceira na vida e na arte, anunciaram em fevereiro passado a criação e a abertura da Fundación Archivo Aharonián-Paraskevaídis, em Montevidéu, no Parque Posadas, na mesma casa em que morou a família e que funcionou por décadas como centro de pesquisas informal. Coriún e Graciela eram amalgamados afetiva e profissionalmente. Ambos nasceram em 1940 (ela em Buenos Aires, ele em Montevidéu) e morreram em 2017. Almas gêmeas.
A fundação agenda consultas ao valiosíssimo acervo de partituras, materiais de pesquisa e gravações por e-mail (fundacionarchivogracor@gmail.com). Marcelo Pereira, no jornal uruguaio La Diaria, escreveu uma frase certeira para definir o trabalho fundamental do casal Aharonián: eles foram decisivos “na compreensão e na análise da dimensão política da cultura e da dimensão cultural da política”, segundo uma ótica ferrenhamente latino-americana, acrescento.
Em 2016, fiz uma longa entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo com este visionário que fundou e dirigiu o Núcleo Música Nova de Montevidéu; batalhou durante a vida inteira pela construção de uma música latino-americana de invenção, livre das amarras e da dupla canga EUA-Europa; e identificou corretamente que a educação é a chave para essa mudança. Professor de composição na Universidade Nacional do Uruguai, Aharonián publicou vários livros sobre essa temática, todos de leitura obrigatória: Hacer música en América Latina, Educación, arte, música e Conversaciones sobre música, cultura e identidade (editora Tacuabé, Montevidéu).
De suas inúmeras respostas contundentes e tão atuais, não resisto em pinçar uma, para desafinar o coreto dos contentes: “Educar musicalmente entende-se como colonizar musicalmente. Entende-se educar musicalmente, quase sempre, como formar o educando nos valores das linguagens da cultura europeia ocidental. Educamos para trás se não sabemos o que acontece hoje em termos de criação musical – culta e popular – e se não partimos de um projeto de futuro implícito. Em sua quase totalidade, a educação musical – e não somente na América Latina – educa para trás”.
Outro que sacode o coreto dos contentes é o maestro norte-americano Robert Treviño, 36 anos, velho conhecido do público paulistano. Chegou a fazer campanha para suceder a Marin Alsop. Foi preterido, mas continua bem-vindo. Já regeu a Osesp em 2018 e 2019 – e, em abril próximo, retorna ao pódio da Sala São Paulo para reger um concerto convencional: a abertura de Il guarany, de Carlos Gomes; o Concerto nº 1 para piano e orquestra, de Sergei Prokofiev (solista: Alexander Gabrylyuk); e a Sinfonia doméstica, de Richard Strauss.
Não escrevi “convencional” por acaso. Treviño publicou no início de fevereiro um artigo intitulado “Secret Symphonies: Reimagining the Classical Concert Experience” (Sinfonias secretas: reimaginando a experiência do concerto clássico), que pode ser acessado no portal da revista inglesa Gramophone. Escrito na primeira pessoa, narra sua experiência de conceber e realizar uma série de concertos diferente com a Orquestra Nacional do País Basco, da qual é diretor musical. O programa foi guardado a sete chaves, permaneceu secreto. “Foi um sucesso sensacional”, escreve o maestro, “mas nenhum de nós podia avaliar o tamanho do risco que corremos”.
Trocando em miúdos. O concerto transformou-se em algo absolutamente previsível – jamais oferece surpresas ao público. A menos que um instrumento se quebre, alguém erre primariamente ou que estejamos diante de uma Yuja Wang, tudo acontece de acordo com o previsto. E quando não há roteiro? Treviño teve a ideia ao visitar o restaurante Bloom in the Park, na cidade sueca de Malmö (ele também é diretor musical da orquestra local). “Você se senta e diz ao garçom quais são suas alergias. Logo começam a chegar os pratos, e eles não dizem o que você está comendo. Você simplesmente experimenta a comida.”
Um concerto assim realizado impede, por exemplo, que parte do público não vá a determinada apresentação só porque há uma peça contemporânea ou uma obra que, mesmo convencional, não seja conhecida. É preciso, como escreve Treviño, fugir do “pré-julgamento” do público. Há anos ele tenta algo diferente, mas sempre esbarrou no conservadorismo da equipe das orquestras. O raciocínio é: se você confia na orquestra e no maestro, então vá ao concerto. “Substituí o conceito de expectativa pelo de pura experiência.”
É claro que foi preciso costurar muito bem um pacto entre músicos, equipe da orquestra e mídia local. Treviño conseguiu repetir a experiência quatro vezes no País Basco. Mas não foi um concerto convencional mesmo. Você pode assistir ao vídeo completo do concerto no YouTube via portal da Gramophone. Há um complexo conjunto de ações – iluminação, coreografia dos músicos, que já na entrada chegam ao palco aos naipes – em obra encomendada, com certeza. A certa altura, depois de uma peça sinfônica, apagam-se todas as luzes e o foco à esquerda fica nos seis percussionistas que interpretam Clapping, peça para palmas (isso mesmo) do minimalista Steve Reich. Em outro ponto, como não vai reger a peça, Treviño vai para a plateia e senta-se como espectador… Mais não conto.
Não é algo que se possa repetir. O impacto vale quando se faz da primeira vez. Mas é um modo precioso de nos alertar para o fato de que os concertos são – ou melhor, que cada concerto é – algo a ser experimentado, não apenas conferido pelo público. Experimentar quer dizer participar, compartilhar. Pensem nisso.