Um olhar para o futuro
Por Nelson Rubens Kunze [diretor-editor da Revista CONCERTO]
Nos últimos trinta anos, a Revista CONCERTO desempenhou um papel importante no desenvolvimento da cultura clássica no país. Para além de seu serviço de divulgação, sempre com uma abordagem democrática, plural e aberta, a publicação acompanhou crítica e construtivamente os principais acontecimentos da área.
A Revista CONCERTO e sua editora Clássicos Editorial sempre se engajaram também em questões de responsabilidade social. Desde os anos 1990, somos uma “empresa amiga da criança” contribuindo para a Fundação Abrinq e fomos pioneiros na adoção de papel de manejo florestal com certificação FSC e na implantação de processos tecnológicos de menor impacto ambiental.
A história da CONCERTO deu-se paralelamente a profundas transformações sociais e culturais que se refletiram no meio musical brasileiro, no modo como a atividade artística é hoje compreendida e no próprio papel que a imprensa passou a ocupar no mundo contemporâneo. O jornalismo cultural exige uma reflexão que leve em conta um olhar estrutural, que informe sobre o presente e ao mesmo tempo o contextualize com o que já passou – e considere o futuro que essas transformações propõem.
Isso torna-se ainda mais desafiador quando consideramos as mudanças em curso hoje. A questões sempre presentes, como a formação de público, a educação musical, a diversidade de repertório ou os mecanismos de financiamento público, somaram-se outras ligadas à diversidade de gênero e racial, ao caráter social da arte e à necessidade de apontar injustiças e preconceitos históricos que também influenciaram na construção da história da música. O jornalismo cultural faz parte desse movimento e precisa ser visto à luz dessas questões.
Com tudo isso, porém, alguns pressupostos da atividade não mudam: a independência editorial, a pluralidade de opiniões e a responsabilidade pelo que é publicado, tudo pautado pela ética do jornalismo profissional.
São esses valores que nos guiam independentemente do suporte – físico ou digital. Pois, além da revista impressa, há vinte anos a CONCERTO investe em novas formas de se comunicar com os leitores – e se destaca por isso. Lembro aqui do pioneiro podcast Papo de Música, realizado entre 2011 e 2014. E do Site CONCERTO, criado ainda nos anos 1990, que já há tempos deixou de ser mero replicador digital da edição impressa para se tornar um veículo com produção e conteúdos próprios.
São inúmeros exemplos, como a série Compositoras em Foco, o podcast Panorama Clássico, as enquetes do Ouvinte Crítico, o Acervo CONCERTO, a série Dança em Diálogo com a São Paulo Companhia de Dança e a parceria com o Digital Concert Hall, da Filarmônica de Berlim, que dá acesso a um dos maiores patrimônios da música clássica internacional.
Num momento em que a atividade crítica perde cada vez mais espaço nos grandes veículos, o Site CONCERTO tornou-se referência ao publicar uma média de duas críticas semanais, reforçando a importância de acompanhar a programação e refletir sobre os temas que ela suscita.
Hoje, trinta anos depois, divulgar música clássica e ópera – para o fortalecimento da cultura humanista e a construção de uma sociedade mais justa e solidária – segue sendo o objetivo da CONCERTO.
São tempos complexos e repletos de desafios, mas estamos prontos e de olho no futuro!
Viva a música! Viva a Revista CONCERTO!

Por João Luiz Sampaio
Acompanhe nas próximas páginas uma retrospectiva de três décadas de música clássica e ópera no Brasil a partir das páginas da Revista CONCERTO.
Condensada, essa retrospectiva não pretende nem consegue ser completa. Ela é apenas um recorte de uma época, uma seleção entre milhares de matérias para você conhecer – ou lembrar – alguns dos grandes momentos da música clássica divulgados na Revista CONCERTO
Introdução Em 1983, Herbert Landsberg, amante da música clássica que havia se aposentado de uma carreira profissional na indústria paulistana, decidiu publicar um pequeno guia com a programação de concertos da cidade. Nascia o São Paulo Musical. O guia, gratuito, era distribuído nos teatros e enviado por correio a quem se inscrevesse. Com o passar dos anos, o São Paulo Musical tornou-se o grande divulgador da temporada clássica da cidade de São Paulo. Sua missão era lotar as salas de concerto!
Foi esse o embrião da Revista CONCERTO. Em 1990, após o desastre gerado pelo governo Collor – que levou também à suspensão do São Paulo Musical –, Cornelia Rosenthal, Mirian Maruyama Croce e Nelson Rubens Kunze se associaram a Landsberg e relançaram a publicação. Ainda que sem alteração no conteúdo – o guia seguia sendo uma listagem das programações clássicas da cidade –, o São Paulo Musical se profissionalizou e ganhou nova diagramação e capas, que reproduziam obras de renomados artistas brasileiros.
Herbert Landsberg faleceu em junho de 1994. O São Paulo Musical seguiu mais um ano, mas Cornelia, Mirian e Nelson perceberam a oportunidade para um novo projeto, jornalisticamente mais ambicioso. Em junho de 1995, circulou a última edição do São Paulo Musical, e, em setembro daquele mesmo ano, foi lançada a Revista CONCERTO.
1995 “Divulgar música e contribuir com a vida cultural de nossa cidade são os nossos objetivos. Temos certeza de que o guia que está em suas mãos é mais um passo nessa direção.” Com essas palavras, o diretor e editor Nelson Rubens Kunze anunciava, em setembro de 1995, o nascimento da Revista CONCERTO. Um roteiro com as atrações musicais de São Paulo vinha acompanhado de matérias editoriais, informações sobre lançamentos de discos e dicas de teatro e dança, além de notícias do mundo musical.
Hans-Joachim Koellreutter completava 80 anos com uma série de concertos. O compositor Amaral Vieira celebrava a descoberta de um manuscrito inédito de Villa-Lobos, Valsa-concerto, ou Valsa brilhante, para violão, escrito em 1904.
Nos palcos, a Orquestra de Câmara da Filarmônica de Berlim apresentava-se no Parque Ibirapuera e no Theatro Municipal de São Paulo na temporada do Mozarteum Brasileiro. Pela série da Cultura Artística, a soprano Cheryl Studer substituía Marylin Horne, que, por sua vez, substituiria Cecilia Bartoli. E no Theatro Municipal de São Paulo, em promoção dos Patronos, Isaac Karabtchevsky regia Don Giovanni, de Mozart, com elenco repleto de jovens promessas do canto lírico brasileiro: o tenor Fernando Portari, a soprano Rosana Lamosa...
Em suas primeiras edições, a CONCERTO trazia também histórias de grandes teatros e salas de concerto e, desde o nº 1, entrevistas mensais com importantes músicos da cena brasileira. Em uma delas, a pianista Yara Bernette, que vinha da Europa para recital em São Paulo, falava sobre seu repertório: “Meus pais eram russos, minha educação musical foi alemã e, nascida no Brasil, estou integrada à música brasileira. Com essa mistura, sou aberta a todo tipo de música – alemã, russa, francesa ou espanhola. Toco Rachmaninov, Beethoven, Chopin ou Villa-Lobos em qualquer parte do mundo e sinto-me em casa”.
E o maestro Júlio Medaglia disparava: “No final do século mais maravilhoso da história da música, muito rico em diversidade cultural, a produção musical está cada vez mais obtusa, em função de uma indústria cultural inescrupulosa”.
1996 Yo-Yo Ma, Kathleen Battle, Nelson Freire, Martha Argerich, Joshua Bell. Poderia ser a lista de alguns dos maiores músicos das últimas décadas – e é. Mas é também a lista das atrações de junho de 1996 – e a temporada teria, ainda, a Orquestra Nacional da França, a Filarmônica de Dresden, Barbara Hendricks, Evgeny Kissin e outros.
Quem também esteve por aqui foi Pierre Boulez, com o Ensemble Intercontemporain. E a música nova aparecia nas páginas, ainda, em conversas com os compositores Gilberto Mendes e Aylton Escobar. “A obra de arte reflete verdades que não são muito confortáveis, sobretudo a uma sociedade com todas as experiências históricas como aquelas que trazemos nas costas”, disse Escobar.
O centenário de Carlos Gomes ganhava um destaque agridoce. “Por falta de execução, as obras tornam-se desconhecidas; desconhecidas, perdemos a referência da sua importância; sem importância, não existe interesse em programá-las”, escreveu o maestro Abel Rocha.
Em 1996, a CONCERTO passava a trazer encartado o Guia de Ouvinte da Rádio Cultura FM e a cobrir a temporada clássica de todo o Brasil. Criava a seção Nossos Músicos, com um perfil do violonista Edelton Gloeden na estreia. E instituía a coluna Repertório, de Lauro Machado Coelho.
Em entrevista, o maestro Eleazar de Carvalho lembrava sua chegada aos EUA: “Quando fiz o teste em Tanglewood, Serge Koussevitzky pediu que o arquivista me passasse a partitura. Era a Páscoa russa, de Rimsky-Korsakov. Devolvi as folhas e ele achou que eu não iria reger. Respondi que eu conhecia a obra de cor”.
O maestro também anunciava seu novo projeto com a Osesp: a integral de Bruckner. Mas a ideia não se concretizou: pouco depois, em setembro, a Revista CONCERTO trazia a notícia de sua morte, lamentando a perda e se perguntando sobre o futuro da Osesp.
A reposta veio na edição de novembro. “O maestro brasileiro John Neschling, regente do Stadttheater St. Gallen, na Suíça, e do Teatro de Bordeaux, na França, é o mais forte candidato ao cargo do falecido maestro Eleazar de Carvalho. Neschling foi contatado pelo secretário estadual da Cultura e faz parte da lista tríplice elaborada pelos músicos.”
Uma nova história estava começando.
1997 A Revista CONCERTO trazia uma novidade: a edição de janeiro-fevereiro passava a trazer uma retrospectiva do ano anterior, com depoimentos de artistas, gestores e jornalistas. Mas 1997, na verdade, começou de olho no futuro da Osesp.
No primeiro número do ano, o oboísta Arcadio Minczuk publicava um artigo no qual defendia que o futuro da orquestra dependia da união de todos: público, governo, músicos. E nas edições que se seguiram, começavam a chegar as notícias. Março: John Neschling aceita o convite para ser regente e consultor artístico com Roberto Minczuk como assistente. Abril: anunciada uma nova sala de concertos na Estação Júlio Prestes. Junho: avaliação dos integrantes da Osesp. Julho: 66 das 95 vagas serão repostas. Agosto: iniciadas as obras da nova sala. Outubro: a nova Osesp faz o seu primeiro concerto com Neschling.
Mas nem só de política cultural se fez o ano. Houve música, muita música. Com Jordi Savall, Philippe Herreweghe e Gustav Leonhardt na programação, a música historicamente informada foi tema recorrente. “A força, a convicção e a emoção me parecem mais significativas. Prefiro ouvir Bach por Maurizio Pollini do que por algum ortodoxo da interpretação histórica. Não sou fetichista”, disse Herreweghe.
Dos antigos aos modernos, Gilberto Mendes se divertia com a definição de sua música como melancólica. “Já ouvi muito isso. Mas falam também do meu bom humor. E olha que eu não sei nem contar uma anedota! Décio Pignatari vem dizendo que eu sou um dos poucos felizes que ele conhece. Eu amo a felicidade. Então veja só quanta contradição. Como é que um homem feliz pode fazer música melancólica?”
“De todas as criaturas endêmicas às Ilhas Galápagos é o Iguana Conolophus – o iguana terrestre – que sempre me chama a atenção. Como é possível que este pequeno dinossauro, de pisada lenta, tenha sobrevivido, escondido na vegetação, até a era pós-moderna?” Assim, com uma boa dose de humor, o maestro e musicólogo Graham Griffiths estreava a sua coluna “Como ouvir música criativamente”, publicada na CONCERTO até o seu retorno à Inglaterra, em 2002.
Arnaldo Cohen, por sua vez, relembrava que música é vida. “Foi escrita pelo ser humano, é executada, ouvida e criticada por ele. A música só existe porque estamos vivos, é uma forma de expressão onde há amor.” O pianista fez uma série de recitais pelo Brasil naquele ano. Foi, aliás, uma temporada com momentos históricos: Simon Rattle regeu a City of Birmingham Symphony; Kurt Masur, a Filarmônica de Nova York; Zubin Mehta, a Filarmônica de Israel. Ainda teve o pianista Radu Lupu, o barítono Dmitri Hvorostovsky, a soprano Kiri Te Kanawa, a mezzo Olga Borodina...
1998 Estávamos distantes do processo de resgate recente do trabalho de compositoras... Bem, nem todos. Em 1998, a pianista Cristina Ortiz acabava de gravar um disco dedicado a obras de Clara Schumann e, bem ao seu estilo, não mediu palavras: “Clara ouvia muito Brahms, Chopin, Mendelssohn, além da música de seu marido. Ela era um pouco a alma do romantismo alemão. Mas era dona de uma visão orquestral muito maior do que a do próprio Robert Schumann”.
Foi um ano de declarações fortes nas entrevistas publicadas pela CONCERTO. Osvaldo Lacerda disparou: “O nacionalismo era um fatalismo histórico. Não vejo por que atribuir grande sentido a Villa-Lobos. O nacionalismo teria existido sem ele”. Luiz Fernando Malheiro colocava os pingos nos is de Carlos Gomes: “Todos falam em O guarani, dizem que Fosca é a obra-prima de Carlos Gomes. Na verdade, Maria Tudor é muito mais bem escrita e personalizada”. João Maurício Galindo escrevia artigo em que reclamava do modo como o trabalho com jovens era visto: “Em vez de ser reconhecido como um especialista, o regente de orquestra jovem em geral ainda é visto apenas como um regente que não conseguiu uma orquestra melhor”.
As páginas da Revista CONCERTO foram também fórum de debate sobre o futuro da Universidade Livre de Música [que anos mais tarde viraria a Emesp], envolvendo questões como mudanças de direção, nova sede e foco do trabalho. Sobrou até para o maestro John Neschling: “Dou o maior apoio. Só espero que não coloquem na minha mão”.
“Depois de anos de eternas reformas, o antigo Theatro São Pedro volta à ativa.” O mau humor do começo do título do texto se justificava: foram anos de anúncios, cancelamentos, inícios e interrupções, até o São Pedro enfim voltar, ocupado pela Osesp – e logo de cara abrigar o resgate da ópera Jupyra, de Francisco Braga, sob direção de Roberto Minczuk.
Entre as grandes atrações internacionais, esteve no Brasil a Orquestra do Concertgebouw, com Riccardo Chailly regendo a Sinfonia nº 5 de Mahler. “Foi uma interpretação dionisíaca, de volume sonoro abundante – às vezes exagerado – que relevou os contrastes entre os naipes numa demonstração de virtuosismo que poucas orquestras do mundo são capazes de encenar”, escreveu Luis S. Krausz na nova seção da CONCERTO, Notas Críticas, com comentários sobre os principais espetáculos apresentados assinados por críticos como Lauro Machado Coelho, Carlos Haag, Regina Porto e outros.
1999 “O grande acontecimento da música brasileira em 1999.” Na retrospectiva de 1999, o comentário se repetia para definir a importância da inauguração da Sala São Paulo em julho daquele ano – e olha que a temporada teve até a Filarmônica de Viena com Lorin Maazel. Nada contra a orquestra, claro. Mas, com a abertura da sala, a Osesp dava passos ainda mais largos para a realização de seu projeto, que por fim consolidou-se como um divisor de águas da atividade clássica no Brasil.
Uma nova expressão passava, então, a fazer parte do vocabulário do meio musical: organizações sociais. Na Sala São Paulo, mas não só. No Theatro Municipal de São Paulo, uma nova forma de gestão era urgente: a quantidade de cancelamentos era tal que até a administração do teatro reclamou à CONCERTO, pedindo que parasse de publicar a agenda com antecedência. “Isso aqui não é primeiro mundo, não”, disse uma gestora.
No Rio, cuja vida musical constava na nova coluna da jornalista Heloísa Fischer, as notícias também não eram das melhores. A Orquestra Sinfônica Brasileira ficara meses sem pagar salários e sem verba para planejar uma temporada para 1999.
Ainda assim, havia boas notícias. Da Alemanha chegavam informações sobre um jovem oboísta brasileiro e seus estudos na Academia da Filarmônica de Berlim: Carlos Prazeres já assumira inclusive o posto de primeiro oboé na Junge Deutsche Philharmonie. Marlos Nobre, por sua vez, celebrava 60 anos com os planos de uma nova ópera inspirada em Lampião. Em visita ao Brasil com o Trio Beaux Arts, o violoncelista Antonio Meneses via-se em um novo momento de sua carreira. “Acho que eu nunca havia feito música de câmara antes, só achava que tinha feito.”
A Escola Municipal de Música completava 30 anos, e seu fundador, Olivier Toni, lembrava a importância da reflexão sobre o ensino: “O regente deve incentivar seus músicos a adquirirem uma cultura, não só tocar um instrumento e mais nada”. E afirmava que a relação com a música era um aprendizado constante. “É fundamental que eu comece a ouvir diferente. Tenho me interessado pelas diretrizes da arte decorativa chinesa, onde há a ideia de que o vazio é vivo. Não é incrível ouvir o som magnífico do vazio?”
2000 Ela esteve entre nós! Em maio de 2000, dentro da temporada do Mozarteum Brasileiro, a Filarmônica de Berlim fez seus primeiros concertos no Brasil – em São Paulo e no Rio de Janeiro –, sob regência de Claudio Abbado. Entre o repertório apresentado, uma Nona sinfonia de Mahler, “como nunca se ouviu nesta cidade”, segundo comentário publicado pela CONCERTO.
Luxo era ter, no mesmo ano da filarmônica, Daniel Barenboim em dose dupla: em recital de piano e à frente da Sinfônica de Chicago, também em estreia brasileira. Ou Matthias Goerne, em três noites de Lied: “Schubert é o centro absoluto de tudo”, disse ele em entrevista. Ou então o Quarteto Alban Berg; o Bach-Collegium Stuttgart com Helmuth Rilling; The English Concert com Trevor Pinnock...
Em 2000, também se celebraram os 500 anos da chegada dos europeus ao Brasil. Maria de Lourdes Sekeff escreveu sobre o assunto pelo viés da música, usando Villa-Lobos como eixo: “O Brasil musical, esse pária filho de pai português, mãe tupinambá e amásia negra, cresceu largado, sem aconchego. O piá Villa-Lobos resolveria o nosso complexo de Édipo legitimando a nossa identidade musical”. Já Anna Maria Kieffer relembraria o caminho iniciado no século XIX em direção a uma música nacional. E Flavio Silva publicaria artigo no qual trazia uma interpretação original para a Carta aberta aos músicos do Brasil, que completava 50 anos: Guarnieri a havia escrito por um sentimento de culpa, por se sentir afastado das ideias de Mário de Andrade.
Nas orquestras, muita movimentação. Roberto Tibiriçá assumia a Petrobras Sinfônica; Jamil Maluf, a Sinfônica do Paraná; Júlio Medaglia, o Theatro Municipal de São Paulo; Luiz Fernando Malheiro, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
A CONCERTO registrou, ainda, os cinco anos do Projeto Guri. “A música é uma referência que contribui para uma autoimagem positiva para crianças e adolescentes. O projeto engloba o todo da ação cotidiana, orientando-se para práticas que favoreçam o exercício da cidadania das crianças e dos adolescentes e sua inserção no processo social”, escreveu a então diretora do Guri Elizabeth Aparecida Lopes Parro, definindo uma ideia que, nos anos seguintes, ajudaria a transformar a cena musical brasileira.
2001 Ao longo dos anos, uma das missões centrais da Revista CONCERTO foi abrir espaço para que os músicos brasileiros falassem sobre seu trabalho. Nessas entrevistas, artistas relembravam suas trajetórias, compartilhavam suas impressões – e os leitores podiam flagrá-los em meio ao processo individual de reflexão sobre o fazer musical.
O pianista Marcelo Bratke contava sobre uma mudança em sua carreira, com o projeto Música para um Pequeno Planeta: “Eu me interesso pelo diálogo entre o erudito e o popular e entre uma e outra das peças coloco um grupo de percussão local. Por exemplo, na Bahia era um conjunto de berimbaus; um grupo de maracatu em Fortaleza”.
Ligia Amadio refletia sobre a presença feminina na regência: “Não é o mundo da regência que é machista. O mundo é machista! Pior: o mundo é racista! E continua sendo”. Vera Astrachan falava aos leitores sobre a recusa do virtuosismo e a aceitação da poesia: “É preciso tentar reconstituir a criação a partir de cada palavra, som por som. É uma questão de forma, mas também é uma questão de alma”.
Anna Stella Schic recuperava sua ligação com a música contemporânea: “Eu fiquei fascinada com as novas perspectivas, com as novas possibilidades que a gente tinha ao piano. Não de martelar e buscar as cordas para fazer isso ou aquilo, mas as possibilidades composicionais. Quer dizer, o que a música contemporânea dava como novos horizontes para o compositor e para o intérprete”.
José Eduardo Martins, por sua vez, discorria sobre a obra para piano de Scriabin, à qual dedicava um disco: “Ainda tenho muitos segredos a desvendar. Há um aspecto místico na obra dele. Assim, você tem que pensar Scriabin como músico e como pensador. A obra dele encobre um mistério, e um mistério é sempre insondável”.
Aos 25 anos, o instrumentista e compositor André Mehmari vencia o Concurso Sinfonia Mário Covas, com “uma sinfonia em cinco movimentos, com metais em profusão e uma passagem pré-gravada com efeitos de sintetizador e sons de multidão processados”. A música contemporânea viveu ainda um marco, com a visita de Karlheinz Stockhausen. E o público, além de ver estrelas como Riccardo Muti, teve a chance de conhecer um promissor artista de 18 anos: o violoncelista Gautier Capuçon.
2002 Olhos voltados para a região Norte. Se o Festival Amazonas já tinha protagonismo na ópera nacional, agora dava seu passo mais ousado desde sua criação, cinco anos antes: começava, com A valquíria, a montagem do primeiro Anel de Wagner produzido no Brasil. E, de Manaus, o caminho levava a Belém, com a criação do Festival do Theatro da Paz, patrimônio que voltava à vida após cuidadosa restauração – e que ganhou uma edição especial da CONCERTO.
Em São Paulo, Gilberto Tinetti se preparava para deixar a função de professor da USP e deu seu palpite sobre quem poderia substituí-lo: “Um pianista de 30 anos, do Rio de Janeiro e que, acredito, faria um bom trabalho”. E fez: não muito tempo depois, as páginas da CONCERTO anunciavam a contratação de Eduardo Monteiro, que, nos anos seguintes, se tornaria referência do ensino do piano no país, professor de Cristian Budu, Leonardo Hilsdorf, Erika Ribeiro, Lucas Thomazinho...
A nova geração ganhava espaço nas páginas da CONCERTO. “Um jovem paulista de 17 anos formado na escola Fukuda, de São Paulo”, Luiz Filipe Coelho foi destaque após receber o Prêmio Eleazar de Carvalho e ganhar como melhor intérprete da obra de Mozart na International Henri Marteau Violin Competition. Outro violinista também celebrava conquistas: Luís Otávio Santos, vivendo entre Bruxelas e Haia, especializado em música barroca, regressava para dirigir o Festival Internacional de Música de Juiz de Fora: “Pretendo me voltar cada vez mais para o Brasil, levar ao meu país o trabalho que estou fazendo na Europa e ajudar a formar novas gerações”.
Uma das atrações internacionais mais aguardadas do ano, a Sinfônica da Rádio da Baviera, acabou cancelando as apresentações por aqui: os músicos resolveram não viajar por causa de uma epidemia de dengue. Mas o maestro veio: Lorin Maazel passou em São Paulo uma semana que entrou para a história. Regeu a Orquestra Experimental de Repertório e, com ela, acompanhou as semifinais do Concurso Maazel-Vilar de Regência. Ao todo, foram dez candidatos. Entre eles, um maestro venezuelano de 20 anos chamado Gustavo Dudamel. Precisa dizer que ele chegou às finais?
2003 “Foi como se tivessem aberto o mar Vermelho e Moisés passasse para o outro lado. Existe essa música? Eu posso fazer isso no piano? Por que nunca ninguém me mostrou isso?” Às vésperas de completar 60 anos, o compositor Almeida Prado relembrava em entrevista seus tempos de estudo – e o momento em que parou de ter aulas com Camargo Guarnieri e conheceu Gilberto Mendes no Festival Música Nova.
Àquela altura, placas tectônicas da criação musical brasileira se moviam. E Almeida Prado resumiu bem a mudança: a oposição entre vanguarda e nacionalismo já não dava conta das possibilidades estéticas. A modernidade agora, para além de escolas, estava em aceitar o compositor como um ser único e entender qual caminho deve seguir.
Para João Guilherme Ripper, o caminho era a ópera. Foi em 2003 que ele estreou sua primeira obra de maior vulto no gênero, Anjo negro, baseada na peça de Nelson Rodrigues. E quantas outras viriam nas décadas seguintes!
Se vieram, foi também porque novas gerações de cantores passaram a ter a música brasileira no radar – resultado do trabalho de professores como a soprano Martha Herr, que falou à CONCERTO sobre o fascínio com a nova criação e seu desejo de passá-lo adiante: “Eu adoro dar aulas, adoro mesmo. Quero cada vez mais formar gente e não só em técnica vocal. Tem que estudar bastante teoria, história da música, estilos...”.
Foi um bom ano para o canto, resumido nos recitais de estreia no Brasil de Nathalie Stutzmann. Teve, ainda, Orquestra de Filadélfia com Yakov Kreizberg; Leonidas Kavakos com a Sinfônica da BBC; e Tan Dun com seu Concerto para aquapercussão, com a Osesp. Já a mágica da música de câmara se fez com a integral da música de Beethoven para piano e violoncelo com Menahem Pressler e Antonio Meneses.
Além disso, um jovem de 14 anos falava à CONCERTO sobre seus planos: “Eu pretendo fazer do piano a minha vida! Talvez eu até estude regência, mas nunca irei me afastar do piano. Quero ser concertista, tenho certeza disso”. Dito e feito, Fabio Martino.
2004 O ano começou na Sala São Paulo com três “nonas” – de Beethoven, Bruckner e Mahler em um só mês, reforçando o status atingido pela Osesp em seu aniversário de 50 anos. “Queremos ampliar os horizontes de escuta do nosso público”, disse o maestro John Neschling em entrevista à edição nº 100 da CONCERTO, lembrando outras obras programadas para aquele ano, como O rei Davi, de Arthur Honegger.
Davi foi personagem de outro momento grandioso da temporada: a apresentação da ópera Davi e Jonatas, de Charpentier, pelos músicos do Les Arts Florissants comandados por William Christie. Para Christie, interpretar o repertório barroco significava atenção ao estilo, mas também liberdade. Uma ideia que o cravista brasileiro Nicolau de Figueiredo ecoaria em conversa com a CONCERTO: “Eu sempre achei a música barroca muito sentimental, teatral, ligada à música popular, natural, com ritmo muito vivo, muito falada. Isso sempre me atraiu”.
O baixo-barítono José van Dam fez recital memorável ao lado do pianista Maciej Pikulski. O pianista Ricardo Castro tocou em duo com Maria João Pires e, em entrevista, lembrou o contato também com outra pianista: “Era estimulante estar perto dela. Ela me ensinou a pular do décimo andar! A sorte minha é que, sendo um pouco índio, aprendi com algum pássaro também a voar. Porque a voar, ela não ensina!”, contou sobre Martha Argerich, que também passou pelo Brasil, para recitais ao lado de Nelson Freire.
No Theatro Municipal de São Paulo, Lohengrin, de Wagner. No Rio de Janeiro, o crítico Luiz Paulo Horta reclamava sobre as poucas montagens no Municipal. Já o compositor Eduardo Guimarães Álvares ocupava as páginas da CONCERTO para defender a importância da atenção com a criação operística de autores brasileiros. E na coluna Rio Musical, Clóvis Marques comentava a terceira visita da nova Osesp ao Rio de Janeiro: “Agora o que vemos é o amadurecimento do projeto. Nas visitas anteriores ao Rio, a excelência instrumental e orquestral saltava mais aos olhos que as virtudes mais difíceis da impregnação musical e da intimidade com o ethos deste ou daquele compositor”.
Ainda deu tempo de os diretores de teatros do Brasil se reunirem no Palácio das Artes de Belo Horizonte para pedir auxílio à Funarte. Da conversa, surgiu a ideia de um edital para a circulação de montagens pelo país. Vinte anos depois...
2005 “O Instituto Baccarelli tem realizado uma importante ação sociocultural em nosso país. Agora, o trabalho ganhou um novo impulso: será construída a nova sede do instituto, capaz de atender a 2.500 alunos por ano.” A nota, no início do ano, mostrava o crescimento do projeto criado pelo maestro Silvio Baccarelli. Algumas edições depois, a notícia de um “conto de fadas”, como anotou a revista: no Brasil, com a Filarmônica de Israel, Zubin Mehta visitou o Baccarelli, ouviu o contrabaixista Adriano Costa Chaves, de 17 anos, e viabilizou uma bolsa para que ele fosse estudar em Israel.
A importância de projetos musicais ligados aos jovens se evidenciava naquele ano também com a primeira visita ao Brasil da West-Eastern Divan Orchestra, criada por Daniel Barenboim e Edward W. Said, com músicos israelenses e árabes.
Foi citando Said que o escritor José Castello refletiu sobre o sentido da arte: “Ao artista, não se pede competência e certezas, mas hesitação e perturbação. Ao artista, como já escreveu Said, pede-se que seja um amador, aquele que se dedica a sua arte por prazer e com liberdade, mas também aquele para quem a arte é um ato de paixão”.
Foram muitas as reflexões. “A música deveria constituir uma ação ideológica de efeito transformador sobre o coletivo e o social”, escrevia Regina Porto ao lamentar a morte de H.-J. Koellreutter. “O que me interessou nas populações com as quais estudei foi tentar entender como são fixados critérios e padrões de beleza. A música em sociedades indígenas tem funções definidas, enquanto para nós o fazer música se dá para conquista do virtuosismo, do mercado, da fama”, falou Kilza Setti.
Também em 2005, estreava na CONCERTO a coluna Semibreves, em que o maestro Flavio Florence, então diretor artístico e regente titular da Orquestra Sinfônica de Santo André, abordava conceitos da música clássica, instrumentos sinfônicos, gêneros e formas musicais até curiosidades históricas. Com verve e fluência jornalística, Flavio manteve sua colaboração até o seu falecimento, em setembro de 2008.
A CONCERTO continuava a seguir de perto as mudanças no meio musical: Jamil Maluf assumia o Theatro Municipal de São Paulo falando em um sistema de produção eficiente, com a criação da central de produção; Eduardo Álvares chegava ao Municipal do Rio decidido a “investir na inteligência e na sensibilidade da plateia”, programando obras como Erwartung, de Schoenberg; Roberto Minczuk tornava-se o novo diretor da Orquestra Sinfônica Brasileira; e Abel Rocha estreava à frente da Banda Sinfônica do Estado com a encomenda de nove obras a autores brasileiros.
2006 O ano começou com uma notícia importante: após a Osesp, a Universidade Livre de Música passava a ser gerida pelo modelo de organizações sociais. Entre as atribuições da ULM, estava, desde 2004, a gestão do Festival de Inverno de Campos do Jordão. E o evento consolidava-se como projeto, com a Orquestra Acadêmica recebendo prêmios pelas gravações realizadas e uma nova proposta pedagógica.
Se o violão hoje está estabelecido na cena erudita como fundamental, há 20 anos não era assim, ainda que o processo houvesse começado: em apenas dois meses, tocavam em São Paulo Duo Assad, Fabio Zanon, Yamandu Costa, Turibio Santos, Paulo Bellinati, Franz Halász, Marco Pereira, Pedro Amorim e Maurício Carrilho; a Faculdade Cantareira lançava um concurso coordenado por Henrique Pinto; e, dos Estados Unidos, chegava a notícia do prêmio de João Luiz e Douglas Lara no Concert Artists Guild, de Nova York.
Em Belém, o Festival do Theatro da Paz recuperava Iara, de Gama Malcher; em São Paulo, a Banda Sinfônica estreava A tempestade, de Ronaldo Miranda; com a Osesp, Ira Levin regia um inesquecível primeiro ato de A valquíria; no Municipal de São Paulo, estreava Olga, de Jorge Antunes; em Belo Horizonte, chegava ao palco a produção de O castelo do Barba Azul, que depois viajaria para São Paulo.
Nelson Freire falava à CONCERTO sobre seu disco com sonatas de Beethoven: “Talvez seja o compositor mais completo que já existiu. A obra dele é tão grandiosa que transcende o período de uma vida humana”.
O Mozarteum Brasileiro celebrava 25 anos com concertos como o da Orquestra Sinfônica WDR da Alemanha, com Semyon Bychkov. E a temporada internacional teria ainda Les Musiciens du Louvre, Maxim Vengerov e Nikolai Lugansky, além de Sergei Leiferkus cantando as Sinfonias nº 13 e nº 14 de Shostakovich com a Osesp.
O ano marcava também a estreia de Kseni, de Jocy de Oliveira. “Embora algumas pessoas digam que a era da questão política na arte já passou, não é verdade. O artista reflete o mundo que vive, e, assim, seu papel é também político”, disse a compositora.
Outro autor a falar à CONCERTO foi Willy Corrêa de Oliveira. Ele concordava com a afirmação de Schoenberg, segundo a qual a arte, se é para as massas, não é arte? “Não concordo de jeito nenhum. Schoenberg, apesar de um gênio, foi um grande f.d.p. ao dizer isso”, respondeu. Que comoção provocaram essas três letrinhas!
2007 Villa-Lobos, 120 anos; Camargo Guarnieri, 100. Sobre Villa, Júlio Medaglia analisava como “mostrou ao mundo uma música culturalmente provocadora, ao mesmo tempo brasileira e universal”, e Gil Jardim escrevia sobre a inexistência de uma política pública que difundisse ainda mais o legado do compositor.
Para falar de Guarnieri, a revista entrevistava uma de suas grandes intérpretes, a pianista Laís de Souza Brasil, que fez recitais comemorativos ao lado do violoncelista Antonio Lauro del Claro. “Fui ficando mais solta, o momento de se apresentar é de uma emoção muito gratificante; tem a resposta do público, que é uma no início e vai sendo outra conforme a música é tocada. Após o cansaço, o trabalho e a solidão com o instrumento, nessa hora a gente sente que está junto com a humanidade”, falou, sobre as apresentações da obra do mestre.
A Sociedade de Cultura Artística completou 95 anos com Yo-Yo Ma e a Orquestra Jovem Gustav Mahler. O Piap, grupo de Percussão do Instituto de Artes do Planalto, começava as celebrações de seus 30 anos. “Eu não sou o principal, sou só o cabeça; o grupo funciona mesmo é por causa do coletivo”, contou John Boudler.
A Osesp abria o ano com turnê europeia e, na Sala São Paulo, interpretava Elektra, de Richard Strauss, além de tocar Dream of Gerontius, de Elgar, sob regência de Frank Shipway. Em Manaus, Christoph Schlingensief dirigia O navio fantasma, de Wagner, e Caetano Vilela, Lady Macbeth do distrito de Mtsensk, de Shostakovich.
Pablo Rossi começava o primeiro ano da faculdade em Moscou na classe de Eliso Virsaladze. Atalla Ayan vencia o I Concurso de Canto Helena Coelho Cardoso. Nos EUA, Paulo Szot se preparava para cantar no musical South Pacific. Adriana Queiroz gravava a Oitava de Mahler com Pierre Boulez. Mere Oliveira vencia dois concursos: o Maria Borges, de Montevidéu, e o Francisco Mignone de Jovens Intérpretes.
Do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, chegava, primeiro, a notícia de (mais) uma crise financeira. Depois, uma mudança: Carla Camurati assumia a presidência e nomeava Roberto Minczuk diretor artístico. Ira Levin, por sua vez, virava diretor da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional de Brasília.
Em Belo Horizonte, o Instituto Cultural Orquestra Sinfônica, criado com o objetivo de reestruturar a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, anunciava a nomeação do maestro Fabio Mechetti como diretor musical e regente titular. No fim, optou-se pela criação de um novo grupo: nascia a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.
2008 Foi uma notícia difícil de dar. “Na madrugada do dia 17 de agosto, um incêndio destruiu grande parte das instalações do Teatro Cultura Artística. A grande sala Esther Mesquita foi consumida pelo fogo, assim como camarins e os dois pianos Steinway que a casa possuía. A fachada e o painel em mosaico de Di Cavalcanti não foram atingidos.”
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, a novela Cidade da Música. Anunciado em 2002, o projeto ainda se arrastava, com um custo que já era cinco vezes o valor original, chegando a R$ 460 milhões. “E a Cidade da Música?”, perguntava uma nota publicada pela revista. Era novembro, e nada de inauguração confirmada.
Mas boas notícias vinham de fora do eixo Rio-São Paulo. A Filarmônica de Minas Gerais já anunciava temporada de assinaturas. Em Salvador, o Neojiba entrava em seu segundo ano de funcionamento. Havia muito trabalho pela frente. “Foi para isso que voltei ao Brasil”, contava Ricardo Castro, o idealizador do projeto.
Nos duzentos anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil, Rosana Lanzelotte, que celebrava os 15 anos da série Música na Igrejas, iluminava em artigo as verdades e os mitos da vida musical na corte de d. João no Brasil. Edino Krieger celebrava 80 anos: “Trabalhar é uma maneira de sentir que não estamos envelhecendo. Claro que a idade traz limitações, mas tentamos superá-las e ter uma vida normal. Minha referência é meu avô materno. Nas comemorações de seu centenário, vi que aquele era um homem absolutamente jovem. Temos que fazer dessas datas uma festa”.
Do outro lado do mundo, Amaral Vieira completava 250 apresentações no Japão. Em Londres, Fabio Zanon tornava-se professor na Royal Academy of Music. Sidney Molina celebrava a estreia, pelo Quarteto Quaternaglia, de uma obra de Leo Brouwer, em sua primeira visita ao Brasil: “Dessa interação viva com o autor, as obras saem fortalecidas”.
Estiveram na temporada a Staatskapelle Berlin, com Daniel Barenboim, e o Quarteto Alban Berg, em sua turnê de despedida. Foram apresentações celebradas na retrospectiva do ano. Mas, espalhada pelos depoimentos, havia perplexidade com outra notícia: John Neschling não renovaria seu contrato com a Osesp em 2010. “Estaríamos diante de um tsunâmi?”, perguntou-se Irineu Franco Perpetuo. E como.
2009 Em uma entrevista em dezembro de 2008 ao jornal O Estado de S. Paulo, John Neschling criticava o governo do estado por ingerência e pressões sobre o projeto Osesp. O maestro acusava o governador José Serra de perseguição. Dizia não poder mais manter silêncio. O público ficou a seu lado. Após o último concerto da temporada, pedia: “Fica! Fica!”. Mas, logo em janeiro, a bomba: John Neschling demitido.
A CONCERTO cobriu a notícia de todos os ângulos. Por um lado, mostrou como as mudanças na Osesp faziam parte de um processo mais amplo levado a cabo pela Secretaria de Estado da Cultura, que também intervinha na Universidade Livre de Música, trocando a gestão do Centro Tom Jobim pela da Santa Marcelina Cultura. A assertividade dos textos levou o secretário João Sayad a publicar um artigo no qual se comprometia a manter o funcionamento dos projetos.
Por sua vez, era necessário registrar o significado do trabalho de John Neschling. “Não custa repetir. No que diz respeito à atividade de nossa música clássica, a Osesp é um marco histórico, um divisor de águas. Um projeto visionário e um investimento público inédito viabilizaram uma realidade cultural que alçou a vida musical paulista a patamares de qualidade internacional. São poucas as cidades no mundo que possuem uma orquestra que oferece um repertório equiparável ao da Osesp. Uma orquestra dinâmica, participativa, que impulsiona a vida e a cultura, com um repertório erudito, vivo, instigante e provocador. E isso se deve em grande parte à visão e à liderança de um empreendedor, o maestro John Neschling”, escreveu Nelson Rubens Kunze.
A Osesp agora tinha como regente o francês Yan Pascal Tortelier, enquanto uma comissão buscava um novo maestro. Foi ele que comandou, em julho, as celebrações pelos dez anos da Sala São Paulo. Em meio a tudo, o clima era agridoce. Em entrevista, o maestro Fabio Mechetti mostrou quanto o projeto Osesp renderia frutos. O modelo da Filarmônica de Minas Gerais era inspirado no da orquestra paulista, e o próximo passo, disse ele, era a construção de uma nova sala em Belo Horizonte.
Se teatros eram o assunto, havia novidades. O Instituto Baccarelli inaugurava sua nova sede. A Cultura Artística apresentava o projeto de seu novo teatro. Paulínia abria seu teatro municipal. Enquanto isso, os de São Paulo e Rio de Janeiro eram fechados para reforma. Não por acaso, foi um ano difícil para a ópera. Era preciso defendê-la. “A ópera é parte do imaginário coletivo. É o terreno das emoções fortes, dos amores inconfessados, do belo, do drama e da comédia. A ópera só é vista de maneira distorcida onde reina a desinformação”, escrevia Cleber Papa.
No Rio de Janeiro, enquanto a Cidade da Música era ainda um mistério, analisado em artigos de Clóvis Marques, Luiz Paulo Horta e João Luiz Sampaio, o compositor João Guilherme Ripper mostrava talento como gestor ao assumir a Sala Cecília Meireles. Também no Rio, nascia pelas mãos de Lilian Barretto o Concurso Internacional BNDES de Piano, resgatando a memória dos grandes concursos realizados na cidade.
Em um ano tão agitado, a CONCERTO comemorava 14 anos de publicação ininterrupta. E o fazia com um novo projeto gráfico e editorial: formato grande, novas seções (Vidas Musicais, espaço para ensaios, Minha Música), roteiro ilustrado e uma parceria com a revista Gramophone, da qual passava a publicar conteúdo exclusivo.
Para marcar a estreia, a capa da edição de setembro trazia um perfil do violoncelista Antonio Meneses. “Geralmente me aproximo das obras muito antes de realmente começar o trabalho de aprendizado”, contou. “É uma espécie de namoro com a obra, que para mim é muito importante para que haja uma familiarização intelectual e espiritual com ela. Depois disso, muitas vezes começo a estudá-la mesmo sem ter nenhum concerto marcado. Só quando me sinto bem à vontade com ela é que marco a data do ‘casamento’ ou, no caso, da apresentação. O interessante é que isso pode ser uma questão de um mês ou de muitos anos, sem que uma regra explique a quantidade de tempo necessária. Mas é um processo muito importante para mim.”
2010 “Por que construímos muros contra o novo, injetando nos alunos o preconceito contra a música de nosso tempo?” A temporada trazia algumas respostas à pergunta do artigo de João Marcos Coelho, que passava a assinar a coluna Música Viva. A mais eloquente vinha do Festival de Campos do Jordão, gerido pela Santa Marcelina Cultura, com “um livre trânsito entre as técnicas interpretativas e o repertório composicional”, nas palavras do diretor pedagógico Silvio Ferraz.
Como ampliar a presença da música brasileira no repertório, se a edição de obras ainda era um problema? Com a orquestra do Neojiba e a Sinfônica Heliópolis na Europa, como entender a força que os projetos de inclusão social por meio da música atingiam?
As discussões vinham na forma de artigos ou entrevistas. No contexto de expansão de iniciativas de formação musical, era “preciso estimular os alunos a pensar, a buscar soluções, para depois, juntos, analisarmos seus progressos e eu ver como posso ajudá-los”, dizia Emmanuele Baldini. “Eu quero que o aluno se torne ativo, criativo.”
Jamil Maluf comemorava os 20 anos da Orquestra Experimental de Repertório. “Queremos mostrar um mundo diferente, no qual podemos pensar de forma nova”, dizia o maestro. Edmundo Villani-Côrtes celebrava 80 anos: “Quando falamos de minha parte erudita, misturo as informações que tenho da música popular, e o contrário é verdade”.
Nos EUA, o compositor Felipe Lara recebia crítica no jornal The New York Times. Marcelo Lehninger era escolhido como regente assistente da Sinfônica de Boston. No Brasil, o pianista Cristian Budu e o violinista Djavan Caetano ganhavam o Concurso Jovens Solistas Nelson Freire.
A temporada viu, como de costume, um desfile de artistas: Yo-Yo Ma, Itzhak Perlman, Maria João Pires, Kurt Masur, Augustin Hadelich. Mas era preciso estar atento também às mudanças na cena musical. A Osesp nomeou Arthur Nestrovski diretor artístico. Abel Rocha foi demitido da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo. O Theatro São Pedro de São Paulo criou uma orquestra de ópera dirigida por Roberto Duarte. Eliane Parreiras tornou-se presidente da Fundação Clóvis Salgado e Roberto Tibiriçá, regente da Sinfônica de Minas Gerais. Alex Klein assumiu como titular no Theatro Municipal de São Paulo. John Neschling retornou ao país, agora à frente da Companhia Brasileira de Ópera.
E a década estava apenas começando.
2011 A notícia veio logo em fevereiro: a maestra norte-americana Marin Alsop era a nova titular da Osesp, com Celso Antunes como regente associado. “Comparada com minha experiência em Baltimore, minha chegada à Osesp é bastante diferente. Aqui há uma atmosfera positiva, cheia de possibilidades”, disse ela à CONCERTO. Uma nova fase começava na Osesp.
Alex Klein deixava a regência da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Na casa paulistana, celebrando seu centenário, isso foi só o começo. Abel Rocha assumiu em seguida a direção artística. Com a reabertura após a reforma, viria uma temporada com títulos como A valquíria, de Wagner (que levou a uma longa reportagem sobre a tradição wagneriana no Brasil). E ainda haveria a criação da Fundação Theatro Municipal – e, sobre isso, muita água ainda rolaria. E John Neschling se desligava da Companhia Brasileira de Ópera.
Mas nenhum ruído foi tão grande quanto o que acometeu a cena musical carioca. O anúncio de que os músicos da Orquestra Sinfônica Brasileira seriam submetidos a audições de avaliação gerou repercussão nacional e internacional. Solistas cancelaram concertos com o grupo. Audições foram boicotadas. A solução só se deu com a saída de Roberto Minczuk da direção artística, que passou às mãos de Fernando Bicudo e Pablo Castellar. A orquestra seria dividida em duas: uma com os novos músicos contratados e a OSB Ópera & Repertório, com aqueles que se recusaram a audicionar.
A confusão foi tamanha que a integral de Beethoven feita com Lorin Maazel acabou eclipsada. Mas foi um dos pontos altos do ano, assim como a Orquestra Simón Bolívar com Gustavo Dudamel, Philip Glass, Yuja Wang, Christian Tetzlaff, Thomas Adès, Quarteto Emerson.
Antes que o ano acabasse, uma reportagem ouviu músicos como Luís Otávio Santos, Marcelo Fagerlande, Helena Jank e Ricardo Bernardes para discutir como estava se criando um espaço fértil para a prática da música antiga no país. João Carlos Martins, por sua vez, falava de seu trabalho como regente. “Não entrei na regência por brincadeira. Minha luta é para fazer na regência o que fiz durante trinta anos ao piano, com Bach. O que eu quero é excelência.”
2012 O Theatro Municipal de São Paulo tinha, enfim, seu annus mirabilis. Sob a direção artística de Abel Rocha, nove óperas foram encenadas, incluindo O crepúsculo dos deuses, de Wagner, dando continuidade ao Anel brasileiro de André Heller-Lopes, e uma nova produção de Macbeth, de Verdi, assinada por Bob Wilson. Em Manaus, Lulu, de Alban Berg, ganhava estreia brasileira. No Rio, nascia Piedade, de João Guilherme Ripper, pelas mãos da Petrobras Sinfônica.
A Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, com Claudio Cruz como diretor musical, iniciava uma trajetória que faria dela um grupo de excelência, ligado à Emesp. O projeto Ópera Curta de Cleber Papa levava espetáculos a 33 cidades. Brasil afora, a Filarmônica do Espírito Santo consolidava o trabalho iniciado anos antes por Helder Trefzger; Carlos Prazeres assumia a Sinfônica da Bahia; Guilherme Mannis dava forma à Sinfônica de Sergipe.
A Cultura Artística, agora centenária, trazia ao Brasil os pianistas Lang Lang e Evgeny Kissin; a Orquestra Del Maggio Musicale Fiorentino sob regência de Zubin Mehta; as cantoras Joyce DiDonato e Renée Fleming; e o Ensemble Intercontemporain. Aliás, que ano para o piano! Marc-André Hamelin e András Schiff tocaram por aqui pela primeira vez; e Maria João Pires e Bertrand Chamayou completaram a lista.
O piano foi assunto também da conversa com Myrian Dauelsberg, professora e criadora da Dellarte. “O professor lapida não apenas marcando o dedilhado e dando indicações de dinâmica. São tantas as minúcias que devem ser passadas de forma subjetiva que o professor, nesse nível, vira quase um psicólogo. Você deve ensinar também como se valorizar sem ser pretensioso, como abrir caminhos para a carreira”, afirmou.
Gilberto Mendes comemorava 90 anos: “Veio um jovem aqui e me mostrou uma peça que imitava Mozart tão bem que eu fiquei admirado! Aí eu disse para ele: ‘Você não vai compor isso, pois isso não se faz mais’. Aí o que eu faço? Entorto o cara. Ponho um pouco de dodecafonismo, misturo coisas. Quando eles estão bem misturados, eu digo: ‘Agora volte a ser quem você era, faça a música que você fazia antes’. Mas aí ele não consegue, já entraram outras coisas. Já fiz isso com três compositores e deu certo”.
André Rieu trazia sua trupe ao Brasil. Mas os concertos não foram tão memoráveis como o artigo O falsificador, de Leonardo Martinelli. Cartas, muitas, à redação.
2013 Quando foi anunciado, o ciclo das nove sinfonias de Beethoven pela Filarmônica de Câmara Alemã de Bremen gerou bastante interesse – e não era para menos. Mas qualquer expectativa foi superada. Comandados por Paavo Järvi, os músicos do grupo fizeram história ao oferecer ao público de São Paulo um novo paradigma de interpretação das obras.
O centenário de A sagração da primavera, de Stravinsky, foi tema de artigos, análises e reportagens. Ricardo Bologna e o Percorso Ensemble celebraram uma década de trabalho, e ele lembrou sua formação como percussionista e a importância que nela teve Elizabeth del Grande, que também falou à CONCERTO: “Sonhos? Na época em que comecei a estudar percussão, eu tinha vontade de fazer regência, mas acabei desistindo porque já dava muito murro em ponta de faca pelo fato de ser mulher tocando um instrumento considerado masculino. Pensei: ‘Não vou começar tudo de novo’”.
Viviane Louro discutia educação musical para pessoas com deficiência: “Na educação musical, mesmo sendo ela voltada para pessoas com deficiências, o aprendizado musical é o objetivo central; já na musicoterapia, o foco é a música alcançar um resultado satisfatório ligado à saúde. Por esse motivo, é necessário que haja metodologias eficazes também para a educação musical dessas pessoas”.
A nova geração preenchia as páginas. As compositoras Valéria Bonafé e Tatiana Catanzaro foram tema de reportagens. Camila Titinger e Josy Santos venceram o Concurso Maria Callas. Cristian Budu realizava um feito histórico ao vencer, na Suíça, o prestigioso Concurso Clara Haskil. E o barítono Leonardo Neiva falava à CONCERTO: “Tudo o que aprendi foi na raça, e não desejo isso para ninguém. Quando fui para Itália estudar, economizei muito, por vezes tirando o dinheiro de minha alimentação para pagar as aulas”.
E a notícia mais inesperada: “Quero transformar o teatro em uma instituição moderna, ágil, contemporânea”, disse John Neschling, novo diretor do Theatro Municipal de São Paulo. Faria ele, com a ópera, o que havia feito com a música sinfônica? Era a expectativa, bem resumida na capa da edição de março: “John Neschling – a missão 2”.
2014 A Revista CONCERTO anunciava mais de quatrocentos eventos clássicos mensais. Entre eles, grandes atrações internacionais – em apenas um mês, passaram pelo Brasil a Orquestra Sinfônica da Rádio da Baviera, a pianista Mitsuko Uchida e o flautista Emmanuel Pahud. Mas, nos últimos 15 anos, as instituições musicais brasileiras mostravam-se sólidas, e a qualidade da agenda não dependia mais só dos artistas de fora.
Nesse contexto, a formação das novas gerações de músicos era central. “Se eu for apontar os pontos fortes da educação musical no Brasil hoje, o maior deles talvez seja o trabalho junto a comunidades carentes. Nós estamos mudando o mapa sociocultural dos estudantes de música de uma forma que não existe lá fora”, afirmava Fabio Zanon, que assumira um ano antes a direção pedagógica do Festival de Inverno de Campos do Jordão, quando este havia passado à alçada da Fundação Osesp.
O mercado brasileiro estava pronto para esses jovens? Haveria espaço para eles? Qual seria a atividade deles? Não era uma conta fácil de fazer, mas uma das variáveis era a descentralização. A Revista CONCERTO percorreu o estado de São Paulo para fazer um retrato da atividade orquestral fora da capital. Noticiou a chegada de Neil Thomson a Goiás, para um novo projeto sinfônico. E celebrou os 10 anos do Festival Virtuosi, no Recife. “As pessoas querem boa música”, afirmou Rafael Garcia, seu criador.
Caetano Vilela dirigia Mefistofele em Belém: “Não tenho ambição de dirigir qualquer título. Precisamos saber escolher os que nos tocam, estimulam”. Por sua vez, Livia Sabag assinava Salomé, no Municipal de São Paulo: “Não há necessidade de impor a qualquer obra uma concepção pessoal já estabelecida, mas, antes, de retirar das especificidades de cada ópera os elementos que permitam construir uma interpretação pessoal”.
Os 70 anos de morte de Mário de Andrade foram lembrados por Flávia Toni: “Sua obra musicológica nos ajuda a compreender que, a exemplo de outros poucos países, o campo de criação da música brasileira é mais amplo porque as práticas artísticas populares lhe são inalienáveis”. E Nelson Freire falava de sua formação: “É importante, na juventude, entender quais são os valores puros, ignorar o supérfluo. Sou muito ambicioso, mas minha ambição é para música, não é para carreira”.
2015 Com a Sinfonia nº 2 de Mahler, Fabio Mechetti e a Filarmônica de Minas Gerais inauguraram a Sala Minas Gerais. E a expectativa de uma nova fase para o grupo rapidamente se confirmou: o número de assinantes já crescia em 58%.
Uma apresentação da Orquestra Jovem do Estado sob direção de Claudio Cruz e com Antonio Meneses como solista comemorou os 20 anos da Revista CONCERTO. Na edição de aniversário, a revista perguntou a jovens artistas como gostariam de transformar o mercado. Em outra, reuniu pianistas – Leonardo Hilsdorf, Erika Ribeiro, Ronaldo Rolim, Pablo Rossi, Cristian Budu, Aleyson Scopel, Lucas Thomazinho, Fabio Martino e Sylvia Thereza – para entender como viam o fazer musical.
Era um momento de efervescência, no qual teve início um processo de reflexão sobre o sentido da atividade musical. Era o que propunha a conferência MultiOrquestra. “O confronto com o mundo real é duro, traz angústias. Mas são angústias do nosso tempo: uma orquestra não pode ser uma instituição do século XIX perdida no século XXI”, afirmava Claudia Toni, idealizadora do projeto.
Nas páginas da CONCERTO, um encontro de gerações. “A capacidade de desestruturar o que já existe e de reestruturar tudo em outro formato é o atributo distintivo do compositor e do criador em geral”, disse em entrevista o compositor Paulo Costa Lima. “O que mais me atrai é a questão da criatividade. Ter coragem de seguir pelo caminho não consagrado”, afirmou a pianista Karin Fernandes.
Júlio Medaglia escreveu sobre o projeto Música no Museu: “É possível desfrutar do prazer da música e ao mesmo tempo praticar animação cultural, criando um mercado musical nacional e prestando vários tipos de serviços à comunidade”.
Na Ilhabela, litoral de São Paulo, acontecia o II Festival Vermelhos de Música e Artes Cênicas, realizado por Samuel Mac Dowell de Figueiredo, em um novo e impressionante teatro aberto em meio à Mata Atlântica.
Evandro Matté assumia a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. João Guilherme Ripper e André Cardoso, o Municipal do Rio de Janeiro – eles, “com um dinamismo raro”, mudavam a cara do teatro. Com a Osesp, Isaac Karabtchevsky regeu Gurrelieder, de Schoenberg.
Jorge Coli escrevia: “A música é um vício? Tanto melhor: os viciados sabem o quanto a alma se enriquece com ele”. Algo a se ter em mente diante dos desafios que começavam a se colocar, com a chegada de uma crise econômica que desafiaria a cena musical.
2016 É uma experiência especial ouvir ao vivo os cinco concertos para piano de Beethoven. Duas vezes em uma mesma temporada, então... Foi o que aconteceu em 2016. Com a Osesp, o solista foi Paul Lewis; no Theatro Municipal de São Paulo, Ricardo Castro. “Beethoven nos revela enormes introspecção e delicadeza”, afirmou Lewis. “Ele soube colocar estruturas complexas a alcance de todos”, completava Castro.
Por falar em integrais, Jean-Guihen Queyras tocou as suítes para violoncelo solo de Bach. Valery Gergiev regeu a Filarmônica de Viena. Estrela máxima do canto lírico, Jonas Kaufmann fez recital com canções e árias.
A situação econômica do país, com problemas desde o fim de 2014, começava a mostrar consequências. No Municipal, reduções na temporada (início de uma crise que levaria a denúncias de desvio de verbas e mudanças na gestão). A Banda Sinfônica do Estado foi extinta. A Fundação Osesp anunciava cortes no Festival de Inverno de Campos do Jordão. A Sinfônica Brasileira cancelava sua temporada.
Mas nem tudo era má notícia. Em Tiradentes, o Festival Artes Vertentes chegava à quinta edição. “Não queremos só levar ao público o que está pronto, mas também fomentar novas criações. Apostar no novo e correr risco de algo não sair como o esperado faz parte do processo”, explicou Luiz Gustavo Carvalho. O Festival Sesc de Música de Câmara reafirmava a importância do gênero para a atividade musical. Sob a liderança de Evando Matté, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre dava os primeiros passos para a construção do que viria a ser a Casa da Ospa. Rosana Lanzelotte celebrava os frutos do Musica Brasilis: “Temos hoje cerca de 1.500 partituras de cerca de trezentos compositores”.
O processo de reflexão sobre o meio musical dava protagonismo à luta das mulheres com o I Simpósio Latino-americano Mulheres Regentes, idealizado pela maestra Ligia Amadio, com o objetivo de “criar um espaço de reflexão sobre a atuação da mulher e buscar mecanismos para corrigir disparidades históricas”.
Já o Mozarteum Brasileiro assumia a formação como prioridade. “Entendemos nosso papel de incentivar o desenvolvimento pessoal e social. Este novo Mozarteum que estamos planejando representa a perspectiva de ampliar substancialmente nossos esforços em prol das atividades socioeducativas e beneficiar, assim, mais e mais pessoas”, explicou Sabine Lovatelli, presidente da entidade.
2017 Os concertos para violino de Szymanowski e Brahms; as seis sonatas e partitas de Bach; a integral das sonatas de Beethoven: para uma artista superlativa, uma programação superlativa, cumprida com excelência pela violinista Isabelle Faust: “Ser solista sem ser músico de câmara não faz sentido. Devemos sempre estar em diálogo, ouvindo, respondendo, qualquer que seja a quantidade de pessoas compartilhando o palco com a gente”.
Com Philippe Jaroussky, reaprenderíamos a ouvir Händel. “É uma inspiração que não parece ter limites. É essa paixão pela voz e pelos sentimentos que ela pode expressar”, falava ele sobre o compositor (ou sobre si próprio?). E o Cravo bem-temperado de Bach de András Schiff? Nem vale a pena procurar adjetivo.
O Quaternaglia completava 25 anos. A série Aprendiz de Maestro, da Tucca, 15. O Ensemble Modern vinha ao Brasil nos lembrar da importância da obra de Walter Smetak. E Ernst Mahler era homenageado: “Minha maior satisfação é ouvir meus ex-alunos que se tornaram excelentes profissionais. Eles voltam para me visitar, lembrando os velhos tempos e se queixando da atualidade. Concordamos que estamos remando contra a maré. Mas, mesmo assim, achamos que vale a pena”.
A crise seguia rondando – e não era apenas financeira. A redução orçamentária, na verdade, fragilizava as organizações sociais, escreveu Nelson Rubens Kunze. “O Brasil nunca teve problemas com inícios promissores. A questão é que a falta de apoio e a desestruturação fazem com que os projetos não vinguem”, completou Fabio Mechetti.
A ópera era exemplo bem-acabado. No Theatro Municipal de São Paulo, mais um recomeço, agora com Cleber Papa e Roberto Minczuk à frente da casa. No Theatro São Pedro, a gestão passou às mãos da Santa Marcelina Cultura. No Municipal do Rio, André Heller-Lopes assumiu a direção artística. Nos teatros municipais, as gestões não durariam mais que um ano. Mas o contrário aconteceu no São Pedro. “A ópera pode dialogar com a sociedade. Como? Nós não moldamos as pessoas de hoje, mas podemos tocá-las, transformá-las para que apoiem a existência daquilo que fazemos. E, para tanto, diferentes públicos precisam ser ouvidos. Se essa conversa não acontecer, não vai mudar nada. Não se pode planejar de cima para baixo”, afirmou Paulo Zuben.
2018 O ano se iniciou com a notícia da inauguração da Casa da Ospa, a primeira sede própria da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre em seus 68 anos de existência. “Poderemos, finalmente, investir em nossa identidade sonora, assim como fazem as grandes orquestras internacionais”, comemorou o maestro Evandro Matté, diretor artístico do grupo.
“O estilo de Claudio Santoro é de fato sinfônico. Não tenho dúvida de que, se ele fosse um compositor europeu, seria tão tocado quanto Shostakovich.” Não era uma afirmação banal e escondia um projeto que Neil Thomson revelou à CONCERTO: a gravação, em Goiás, da integral das sinfonias do compositor. Isso ao mesmo tempo que a Osesp finalizava outro trabalho de fôlego: gravar e editar as sinfonias de Villa-Lobos.
Yuja Wang fez recitais com Beethoven, Anna Netrebko estreou no Brasil e Evelyn Glennie tocou James MacMillan na Sala São Paulo. “Cada passagem de uma peça é uma jornada inteiramente minha, construída apenas com as influências que tenho internamente, já que não me lembro dos sons que crio”, explicava a percussionista. A Missa de Bernstein ganhou estreia brasileira no Theatro Municipal de São Paulo.
“Se sou autora hoje, se estou viva agora, nesta época, neste tempo, não é possível que aquilo que sinto e me leva a criar não encontre eco nas pessoas. Mas é preciso diálogo para ampliar a compreensão, influenciar na fruição, para que essa experiência de ouvir o novo seja de alguma forma mais segura”, disse em entrevista a compositora Marisa Rezende. E o pianista Fabio Caramuru também falou à CONCERTO: “O script erudito sempre foi, para mim, um ponto de conflito. Eu, hoje, me sinto livre como artista”.
Percorrendo o país para concertos e recitais, Cristian Budu defendia seu credo artístico e pessoal: “A música de câmara sempre foi o que mais me motivou. Não tem nada mais legal do que ouvir outro músico, conversar por meio da música e crescer no processo. No fim do dia, preciso me sentar com colegas falando de Brahms. É isso que me move”.
Em um artigo, a gestora Flavia Furtado narrava as discussões ouvidas no Fórum Mundial de Ópera, em Madri. “O que vi foi uma proposta para repensar a ópera no mundo. Foram discutidas questões de gênero e etnia, novas formas de trabalho. E a percepção da ópera como locomotiva de negócios, seu poder gerador de riqueza e de empregos”, escreveu – e ali estava o embrião de uma proposta de discussão que Flavia encamparia nos anos seguintes, levando consigo o mercado nacional.
2019 O ano começou com a notícia da criação, pelo Ministério das Relações Exteriores em parceria com a Orquestra Filarmônica de Goiás, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e a Academia Brasileira de Música, de um projeto que previa a gravação de discos dedicados à música brasileira. Nascia, assim, a coleção Música do Brasil, do selo Naxos, que, nos anos seguintes, se consolidaria como uma das iniciativas mais importantes da história da música brasileira.
A Osesp fazia sua primeira viagem à China e anunciou seu novo regente. “Não se trata de fazer a música relevante: ela é relevante. O desafio é fazer com que as pessoas saibam, fazê-las perceber que você não precisa de conhecimento para apreciar a energia de uma orquestra sinfônica”, disse o maestro Thierry Fischer em sua primeira entrevista. Algo parecido foi dito também por Kent Nagano, que vinha ao Brasil com a Sinfônica de Montreal pelas temporadas da Cultura Artística e da Dellarte: “Ninguém é obrigado a ouvir música clássica, mas as pessoas que fazem isso podem se dar conta de que uma sinfonia talvez seja símbolo da perfeição humana, daquilo que podemos atingir”.
Enquanto isso, a maestra Simone Menezes se destacava na Europa. O Neojiba inaugurava nova sede no Parque do Queimado, em Salvador. O Festival Vermelhos celebrava cinco edições em Ilhabela. E Luiz Fernando Malheiro deixava a direção do Theatro Municipal do Rio, sendo substituído por Ira Levin.
Antonio Meneses, Fabio Zanon e Sasha Boldachev subiam juntos ao palco do Festival de Maio, em Belo Horizonte. Erick Venditte vencia o Prêmio Ernani de Almeida Machado. Anna Maria Kieffer lançava um projeto com um panorama da música em São Paulo no século XIX.
O Mozarteum trouxe ao Brasil Elina Garanca: “Meu grande inimigo é o tédio. Se fico entediada, tendo a fazer as coisas de qualquer jeito, e isso nunca é bom”. Heinz Holliger regeu Dos cânions às estrelas, de Messiaen, com a Osesp. A Tucca promoveu apresentação de John Eliot Gardiner e seu Monteverdi Choir.
A temporada de ópera também foi vibrante, em especial pelo olhar à criação contemporânea: estreias de Ritos de perpassagem, de Flo Menezes; Liquid Voices, de Jocy de Oliveira; e O peru de Natal, de Leonardo Martinelli; primeira encenação brasileira de Prism, de Ellen Reid; e a estreia completa de Alma, de Claudio Santoro.
Mas nada poderia preparar artistas, gestores e público para a tragédia que se avizinhava.
2020 O mundo parou. No início de março, a pandemia de coronavírus fechava teatros e salas de concerto. E a CONCERTO publicou a triste notícia das mortes dos maestros Naomi Munakata e Martinho Lutero.
Era um tempo de incertezas, mas algo parecia certo: não havia como ficar parado. E a internet tornava-se o novo palco, no Brasil e no mundo, com gravações antigas sendo disponibilizadas e, no caso de escolas de música, aulas sendo dadas on-line.
A CONCERTO reagiu depressa ao novo contexto. O roteiro do Site CONCERTO passou a divulgar diariamente as transmissões de orquestras e teatros de ópera mundo afora. Uma campanha on-line trazia vídeos de artistas pedindo às pessoas que ficassem em casa. A programação dos Cursos CLÁSSICOS foi ampliada e oferecida com 50% de desconto: ao todo, apenas neste ano, foram quase setenta cursos para mais de novecentos alunos participantes.
Entre maio e julho, a revista promoveu recitais ao vivo pela internet, nos quais pianistas, de suas casas, tocavam e comentavam obras: pelo Festival Beethoven, passaram Cristian Budu, Sylvia Thereza, Leonardo Hilsdorf, Ricardo Castro, Sérgio Monteiro, Aleyson Scopel, Karin Fernandes, Olga Kopylova e Marcelo Bratke. Em seguida, a série Encontros CLÁSSICOS trouxe Fabio Zanon, Antonio Meneses, André Mehmari e Sonia Rubinsky para recitais on-line e conversas sobre a carreira, das quais participou ainda o maestro John Neschling, a mezzo soprano Anna Maria Kieffer e o cravista Marcelo Fagerlande. Era criado também o CONCERTO Entrevista, em que convidados eram entrevistados por jornalistas e músicos.
Em setembro, orquestras e salas de concerto começavam a retomar atividades no palco, sem público. Outras instituições passaram a produzir conteúdo especialmente para a internet, explorando as possibilidades do digital.
Em sua nona edição, o Prêmio CONCERTO mudava de formato, premiando iniciativas que se destacaram no processo de reinvenção da pandemia. O Instituto Baccarelli foi escolhido pelo trabalho realizado em favor da comunidade de Heliópolis. A Filarmônica de Minas Gerais, pela excelência da transmissão de apresentações ao vivo, incluindo a série de sinfonias de Beethoven com José Soares. A Sinfônica de Santo André, dirigida por Abel Rocha, venceu por Trilogia trancafiada, na qual mostrou os sentimentos experimentados pelos músicos e pelo público durante o isolamento social. E a Sala Cecília Meireles, comandada por João Guilherme Ripper, foi lembrada pela integral das sonatas para piano de Beethoven.
Também em 2020 era criado o Projeto Sinos, com o objetivo de trabalhar ao lado de projetos de formação musical e inclusão social, oferecendo capacitação de professores, alunos e um novo repertório encomendado a compositores brasileiros. “O Sinos é um projeto estrutural, que pretende ajudar quem já está trabalhando, possibilitando uma ampliação das atividades. Isso se faz com infraestrutura”, explicava André Cardoso.
O ano ainda seria marcado pela criação do Fórum Brasileiro de Ópera, Dança e Música de concerto. Com ele, ficou clara uma percepção: a importância do diálogo e da cooperação entre todas as instituições.
2021 Desde o ano anterior, instituições passaram a realizar discussões sobre o fazer musical. O Palácio das Artes, por exemplo, promoveu o #ÓperaHoje, com debates sobre o meio musical brasileiro. A parada na programação havia feito o meio musical olhar para si – e esse processo não se referiu apenas a questões de infraestrutura, mas também a questões como o preconceito racial e de gênero.
Gabriella Di Laccio lançava o relatório Equality & Diversity, da Fundação Donne, mostrando que, na temporada 2020-21, de cem orquestras por todo o mundo apenas 5% das obras eram de compositoras. No Brasil nascia o Ubuntu Brasileiro, coletivo de artistas negros. “Há uma hegemonia branca no meio musical que nunca foi questionada. Onde estão os solistas instrumentais negros, os compositores, os regentes? Eles não aparecem nas temporadas das nossas orquestras”, disse o violista Iberê Carvalho.
Outro tema importante se colocava, em especial no universo da ópera: a produção de obras contemporâneas não seria um caminho a seguir nesse novo mundo? O Festival Amazonas de Ópera, por exemplo, realizou uma edição totalmente on-line, encomendando três novas óperas nascidas para o universo da internet.
Alguns eventos se dedicaram, então, a refletir sobre como seria essa nova ópera. O Ateliê de Criação idealizado por Lívia Sabag e Gabriel Rhein-Schirato em Belo Horizonte, promoveu amplas discussões sobre dramaturgia e processos criativos, as quais resultaram na estreia de cinco novas obras. Já o Theatro São Pedro de São Paulo criava o Ateliê de Composição Lírica.
A programação de concertos vivia o chamado “novo normal”, com concertos eventualmente precisando ser cancelados de acordo com o nível de contaminação. Gabriela Montero apresentava-se com a Osesp. “Eu não posso não improvisar, é quem eu sou. Talvez com o tempo eu me veja mais como criadora, não recriadora”, comentou.
Aleyson Scopel lançava um disco com obras de Almeida Prado: “Sua música fez com que eu me encontrasse como pianista, me ensinou a liberdade”. Paulo Esper realizava o 19º Concurso Maria Callas, símbolo de resistência, nas palavras do colunista Jorge Coli.
E a morte de Nelson Freire deixou a música de luto.
2022 Foi o ano do renascimento.
A Sala Cecília Meireles programava mais de oitenta concertos, assimilando ensinamentos de um curso para gestores idealizado por João Guilherme Ripper. E o I Festival de Ópera de Guarulhos coroava um trabalho musical desenvolvido na cidade há mais de duas décadas pelo maestro Emiliano Patarra.
Entre abril de 2021 e dezembro de 2022, seriam apresentadas mais novas óperas brasileiras do que a soma de estreias dos últimos 15 anos. A lista incluía Navalha na carne, de Leonardo Martinelli, e Homens de papel, de Elodie Bouny, as duas primeiras encomendas da história do Theatro Municipal de São Paulo. Em Belo Horizonte, estreou Aleijadinho, de Ernani Aguiar; em Vitória, A procura da flor, de André Mehmari. Rodrigo Toffolo e a Orquestra de Ouro Preto encenaram O auto da compadecida, início de uma frutífera colaboração com Tim Rescala.
Os artistas estrangeiros voltavam a fazer parte da programação da Cultura Artística, Dellarte, Mozarteum: Piotr Beczala, Khatia Buniatishvili, Joshua Bell, Jean-Yves Thibaudet, Jakub Józef Orlinski, os irmãos Jörg e Carolin Widmann. Kirill Gerstein fazia, com a Osesp, a estreia latino-americana do Concerto para piano de Thomas Adès.
Francisco Mignone era gravado pela Osesp e resgatado pela coleção editada por Maria Josephina Mignone. Os primeiros discos da coleção Música do Brasil com as sinfonias de Claudio Santoro eram lançados. Flo Menezes promovia a XIV Bienal Internacional de Música Eletroacústica e o Festival Polifernália de Música Contemporânea. O sopranista Bruno de Sá assinava contrato com a gravadora Warner. A violonista brasileira Gabriele Leite ganhava o Segovia Rose Augustine Award.
No Festival Sesc de Música de Câmara, o maestro brasileiro Luiz de Godoy regeu a Missa de Santa Cecília, do padre José Maurício Nunes Garcia, com a Osusp, os Meninos Cantores de Hamburgo e o coletivo antirracista Jeholu. A Sphinx Organization, destinada a dar apoio a artistas negros e latino-americanos nos EUA, promovia apresentações. “A ideia de música clássica, no que diz respeito a repertório, por exemplo, é muito mais ampla do que já foi. A inovação, considerando também as formas de apresentação e diálogo com o público, vem da diversidade. E sem inovação não há excelência”, disse Afa Dworkin, à frente do projeto.
Nascia um novo fenômeno da música brasileira: o violinista Guido Sant’Anna ganhou o Concurso Fritz Kreisler, na Alemanha.
2023 Difícil lembrar uma produção que tenha provocado tamanha controvérsia na cena brasileira quanto a de O guarani, de Carlos Gomes, idealizada por Ailton Krenak. Ao recuperar a história de Ceci e Peri e ver nela elementos do preconceito com relação aos povos indígenas, a montagem se tornava símbolo da preocupação com temas contemporâneos da gestão da Sustenidos à frente do Theatro Municipal de São Paulo. No mesmo palco, estreava Isolda. Tristão, de Clarice Assad, evocando a história medieval para discutir a crise atual de refugiados.
Temas da nossa história também passavam pelas mãos da diretora Julianna Santos, que dirigiu produções de óperas como Piedade, de João Guilherme Ripper: “É interessante pensar como autores nos colocam em contato com uma ideia de brasilidade por meio da descoberta deste país, que é tão grande e repleto de diferenças”.
Para a ópera, a realização da conferência anual da Ópera Latinoamerica durante o Festival Amazonas de Ópera coroava um processo de reflexão sobre o gênero no país. A programação lírica trouxe produções de A raposinha astuta, por André-Heller Lopes, e, em São Paulo, de Realejo de vida e morte, parceria de Jocy de Oliveira com Adriana Lisboa. E, em Vitória, a estreia de Contos de Julia, de Marcus Siqueira, consolidava o trabalho do Núcleo de Criação do Festival de Música Erudita do Espírito Santo.
Berenice Menegale comemorava os 60 anos da Fundação de Educação Artística de Belo Horizonte. A Ação Social pela Música reunia Claudio Cruz e Antonio Meneses para um concerto com a Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro. Ronaldo Miranda celebrava 75 anos com o balé Macunaíma: “Como compositor, eu me coloco a possibilidade de escrever da maneira que me parecer a mais interessante. Como professor, entendo que jamais devo impor escolhas estéticas”.
Rudolf Buchbinder fazia recitais dedicados a Beethoven: “Ele é uma espécie de centro em minha vida e meu repertório”. Também pelo Mozarteum Brasileiro, Bryn Terfel emocionou o público com sua leitura de Wagner. Com a Osesp e Thierry Fischer, Stephen Hough tocou a obra para piano e orquestra de Rachmaninov: “É uma jornada bastante especial. Essas cinco obras são bem diferentes. Explorar esse corpus com os mesmos maravilhosos regente e orquestra, na mesma sala maravilhosa, será uma experiência fantástica”. E foi.
2024 Dezesseis anos depois de ser consumido pelo fogo, o Teatro Cultura Artística estava de volta. E rapidamente a rua Nestor Pestana voltava a ser um ponto de encontro dos amantes da música – entre tantas atrações, Matthias Goerne fez história com seus recitais dedicados a Schubert.
No que diz respeito a teatros, Belo Horizonte levou um susto: movimentos do poder público e da iniciativa privada tentaram tirar da Filarmônica de Minas Gerais sua sede. A reação foi grande, e o plano não foi adiante.
A compositora Unsuk Chin teve obras estreadas pela Osesp: “Aprendi que é possível criar algo novo com qualidade sem dar as costas às diferentes tradições, mas que cada um deve encontrar, ou criar, suas próprias tradições”. Também na Sala São Paulo, apresentava-se o pianista Víkingur Ólafsson: “O intérprete tem que ser muito honesto em sua maneira de decidir o que tocar. Nem todas as sonatas de Beethoven têm o mesmo nível de apelo para mim. Se você perguntasse a Kurtág ou Adams se todas as suas obras têm o mesmo valor, eles ririam. Eu programava mais obras de que gostava, mas não amava, aí mudei isso. Honestidade é a chave”.
A Orquestra Sinfônica da UFRJ comemorava seu centenário. O Projeto Musica Brasilis completava 15 anos de resgate da música brasileira. Roberto Minczuk relembrava os 30 anos de carreira, que começou na trompa e o levou a importantes salas de concertos. E Isaac Karabtchevsky chegava aos 90 anos, em ação. Sonhos? “Muitos, muitos. Eles não param. Às vezes eu acordo à noite, ansioso por colocar no papel aquilo que eu tinha sonhado e pensado. Mais pensado que sonhado.”
Maíra Ferreira consolidava-se como nome central da nova geração de regentes brasileiros, à frente do Coral Paulistano e de espetáculos de ópera: “Percebi que o fato de eu respirar como quem trabalha com coro fez diferença. Isso me deu confiança e desejo maior de navegar também por esses mares. Eu quero poder fazer música com ainda mais gente do que eu já faço hoje”.
Uma nota profundamente triste: a morte de Antonio Meneses, no auge de seu talento.
2025 Porto Alegre ganha novo palco, o Teatro Simões Lopes Neto. Indústria da música deve se unir pela defesa do meio ambiente. Gabriela Ortiz, música comprometida com a história. Guido Sant’Anna lança seu primeiro disco. Beethoven e a arte como resistência. Wozzeck, a ópera que sangra. Flo Menezes: isso não é uma ópera. A voz sublime de Aldo Baldin. Revista CONCERTO tem novo podcast.
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