Texto de Lauro Machado Coelho na Revista CONCERTO de abril de 2005
Quando, no século XIII, a Liga dos Cavaleiros Teutônicos tentou invadir a Rússia, o país foi defendido pelo príncipe Aleksandr de Novgórod (1220-1263), que recebera o título de Aleksandr Niévski porque, anos antes, derrotara os invasores tártaros numa batalha travada à beira do rio Nevá.
Atraindo os guerreiros alemães para o combate sobre a superfície de um lago gelado, Aleksandr levou-os para o ponto onde a camada de gelo era mais fina e, não resistindo ao peso de suas armaduras e cavalos, rompeu-se, afogando-os em suas águas geladas (já naquela época, o General Inverno era um precioso aliado dos guerreiros russos). Por esse ato de bravura, Niévski foi canonizado santo pela Igreja Ortodoxa.
Às vésperas do ataque das forças nazistas à União Soviética, o governo stalinista, percebendo o potencial propagandístico desse episódio histórico, encomendou ao grande cineasta Serguêi Eisenstéin um filme que o celebrasse, preparando o espírito da população para resistir à nova invasão, que se preparava. Serguêi Prokófiev, que retornara à URSS após vários anos passados no exterior, foi encarregado de escrever a trilha sonora para esse filme, ainda notável - hoje, que a circunstância histórica que o gerou já pertence ao passado - pela beleza plástica de suas imagens, a composição refinada de cada fotograma, o rigor com que a técnica eisensteiniana da chamada "montagem por atração" cria toda a tensão dramática da espera pela luta, e o drama épico do combate sobre o lago gelado.
Música e imagem encontram-se tão indissociavelmente ligados nesse filme que, tempos atrás, tendo a gravação original, regida pelo próprio Prokófiev, se tornado, com o tempo, rouca e indistinta, foi lançada em vídeo uma versão nova, em que a trilha fora refeita pela Filarmônica da então Leningrado, regida por lúri Temirkánov. Perde-se com isso, é claro, a autenticidade do registro; mas confere-se maior relevo à participação da música dentro do filme. A figura de Aleksandr Niévski como herói nacional possuía mística tão forte junto à população que, mesmo ele sendo um santo ortodoxo, em 1942 o governo converteu em ordem militar soviética a Medalha de Santo Alexandre, criada em 1722 pelo tsar Alexandre I, o Grande.
A trilha para o filme de Eisenstéin tinha tal potencial musico-dramático que, logo em seguida, Prokófiev a transformou numa cantata para mezzosoprano, coro e orquestra, estreada em Moscou em 17 maio de 1939 (o mesmo aconteceria, em seguida, com a trilha que o compositor forneceu às duas partes do Ivan, o Terrível, desse genial cineasta). Desde então, é como cantata que Aleksandr Niévski tem sido freqüentemente executada e gravada, tornando-se uma das obras favoritas de Prokófiev. Ouvi-la é repassar, na tela de cinema da lembrança, as imagens inesquecíveis do filme de Eisenstéin: a tensão da espera pelo combate, que o cineasta flagra no tremor das lanças, na mão dos guerreiros; o sangrento balé dos combatentes sobre o gelo, que se parte e os arrasta para o fundo; a imagem da mulher solitária que, na desolação do campo de batalha juncado de cadáveres, procura o corpo do namorado, que morreu defendendo a Rússia; o júbilo dos habitantes da cidade de Pskóv que, na cena final, acolhem festivamente Niévski vitorioso.