Texto de Lauro Machado Coelho na Revista CONCERTO de outubro de 1998
O lied (a canção poética) sempre foi um dos gêneros prediletos de Richard Strauss, no qual ele expressou os sentimentos mais pessoais, de forma extremamente subjetiva. Zueignung (Dedicatória), escrita em 1885, quando ele estava com 21 anos, foi a sua primeira obra a tornar-se famosa; e 63 anos depois, seria com canções de uma beleza extasiante que ele haveria de pôr um ponto final em sua carreira, despedindo-se da arte e da vida.
O compositor estava em Montreux, na Suíça, em maio de 1948, quando musicou lm Abendrot (Ao anoitecer), do poeta romântico Eichendorff. Logo em seguida, saiu uma nova edição dos poemas de seu contemporâneo Hermann Hesse. Entusiasmado com essa leitura ele escolheu, entre julho e setembro, três de seus textos – Frühling (Primavera), Beim Schlafengehen (Hora de dormir) e September (Setembro) – transformando-os também em lieder com acompanhamento orquestral. A exceção de Malven, uma pequena canção que só foi descoberta em 1985, estas foram as suas últimas composições. Não pretendia fazer com elas um ciclo mas, como era aparentada a temática das canções, elas foram chamadas de Vier letzte Lieder (Quatro últimas canções) ao serem estreadas em Londres, em maio de 1950, com Kirsten Flagstad, sob a regência de Wilhelm Furtwãngler.
A beleza radiosa do jardim na primavera e, depois, em setembro, a despedida do verão que “fecha seus olhos cansados”; a exaustão do homem depois de um dia cheio de trabalho e o desejo do repouso; a chegada da noite acolhida pelo andarilho cansado que, ao ver as sombras caindo, pergunta serenamente: “Será que a noite é assim?” Está claro porque estes quatro poemas seduziram o homem de 84 anos: eles constituem quatro reflexões sem qualquer amargura sobre o final da vida e a aceitação tranquila do fim. E suscitam dele uma tradução musical de intensa subjetividade, de uma sinceridade à flor da pele. Coroação sublime de uma obra extensa e muito variada, as Quatro últimas canções são uma espécie de testamento espiritual de Strauss, o adeus de um artista que, ao cabo de uma vida extremamente produtiva, demonstra estar em paz consigo mesmo na hora de partir.
Embora pensadas sinfonicamente e utilizando orquestra grande, estas canções têm, de uma ponta à outra, música extremamente natural e de um lirismo recolhido e sem afetação. Como sempre acontece em Strauss, essas últimas canções estão intimamente conectadas ao resto da obra. O mágico solo de violino no interlúdio da terceira canção – um dos mais belos temas concebidos por esse grande melodista – ecoa o trio do Cavaleiro da Rosa pois, como ele, trata também de despedida, sacrifício de si mesmo e aceitação do destino. E, no final, antes que o canto do cuco – imitado pela clarineta – anuncie a chegada da noite, soa na orquestra, num tom suave de aquiescência, uma reminiscência de Morte e transfiguração, o grande poema sinfônico do início de sua carreira.
Especial Leia outros textos publicados na Revista CONCERTO ao longo de sua história
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.