Texto de Leonardo Martinelli publicado na edição de abril de 2014 na Revista CONCERTO
“Não me sinto com 75 anos. Sinto-me mentalmente renovado e cheio de energia. Na verdade, tem que inverter a posição dos números: estou mais para 57 do que para 75!” É desta forma que Marlos Nobre responde quando o parabenizam por seu aniversário ou quando lhe perguntam sobre como é atingir a histórica marca dos três quartos de século de vida em plena atividade.
E não se trata apenas de papo, os fatos falam por si. Além de manter de forma intensa sua atividade como compositor – atualmente seu catálogo soma 119 peças concluídas (mais de vinte delas na última década) e algumas em fase de elaboração –, desde o ano passado Nobre encabeça o processo de reestruturação da Orquestra Sinfônica do Recife, cidade de onde saiu há mais de cinquenta anos para se estabelecer no Rio de Janeiro, então capital da República. “No princípio, relutei em aceitar o convite, pois sabia que seria uma pedrada. Mas acabei por me decidir quando constatei o estado de penúria em que a orquestra estava. Veio um forte sentimento de responsabilidade para com minha terra, e para isso tive inclusive que abrir mão de uma série de coisas que já havia agendado”, diz o músico, que agora divide seus dias entre a Cidade Maravilhosa e longas estadas regadas a muitos ensaios e reuniões na capital pernambucana.
Marlos Mesquita Nobre de Almeida nasceu no dia 18 de fevereiro de 1939, no Recife, cidade onde recebeu suas primeiras lições de música e compôs suas primeiras partituras. Ele é o penúltimo de um total de doze filhos que o contador Carlos Braga Nobre de Almeida e Castro Filho teve ao longo de três casamentos. Marlos nasceu do terceiro, com Maria José Mesquita. O músico detém traços ainda muito comuns dos filhos daquela terra: sua constituição física, alta e robusta, remete à parte miscigenada de sua genealogia, enquanto os olhos claros respondem pela parcela judaico-europeia tão peculiar à cidade que abrigou a primeira sinagoga de todas as Américas, além de ter sido o abrigo de diversos cristãos-novos oriundos de Portugal.
O patriarca Nobre de Almeida fazia questão de cultivar a arte e a cultura. A casa da família tinha uma biblioteca com clássicos da literatura, que encantaram o pequeno Marlos. Cedo também ele passou a explorar a sonoridade do piano, originalmente destinado ao aprendizado da irmã Vanêde. Mas, já aos 5 anos, ele iniciava os estudos formais no Conservatório Pernambucano de Música.
“A composição surgiu como parte de meus estudos ao piano. Chegava uma hora que cansava de tocar os mesmos exercícios, as mesmas músicas. Então, passava a improvisar sobre elas, e não demorou muito para que eu começasse a colocar essas invenções no papel”, afirma o músico, que até hoje encontra na improvisação ao piano a matéria-prima para o fino artesanato que realiza sob o pentagrama. “Eu improviso muito quando tenho que escrever uma obra. Nunca faço uma obra abstrata. Sempre parto do concreto, preciso deste trabalho sobre o som. É a partir daí que eu começo escrever.”
Não por um acaso, foi justamente com uma obra para piano e orquestra que Marlos Nobre se revelou como compositor. Com seu Concertino para piano e cordas, op. 1, concluído em 1959, o jovem recebeu a menção honrosa do 1º Concurso de Música e Músicos do Brasil, promovido pela Rádio MEC. A instituição, então uma das mais importantes do país, teria papel fundamental no desenvolvimento da carreira do compositor. No ano seguinte, ele voltaria a ser premiado no mesmo concurso, só que desta vez com o prêmio máximo, com seu Trio, op. 4.
As temporadas no Rio de Janeiro e em São Paulo logo o despertaram para uma realidade musical mais intensa e complexa daquela que vivenciava no Recife, então isolada do debate que, na virada entre as décadas de 1950-60, dividiu a cena musical clássica brasileira. De um lado, estavam os vanguardistas e atonais associados ao círculo que girava em torno do compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter (com quem Nobre teve sua iniciação à música dodecafônica). De outro, os defensores de uma linguagem musical mais tradicional, em geral ligada à estética nacionalista e a nomes como Heitor Villa-Lobos e Camargo Guarnieri (com quem o compositor também teve aulas).
“Estudei ao mesmo tempo com eles dois, para resolver uma problemática interna minha. Naquela época, eu já achava que a música brasileira estava demasiadamente presa a clichês, e isso me revoltava. Em compensação, o cerebralismo do pensamento serial também não me animava.” O caminho do meio, marcado pela independência artística e a recusa em se associar a algum movimento ou “ismo” (“nacionalismo”, “serialismo”, “neoclassicismo” etc.) continua a ser o mote da poética de Marlos Nobre, cuja obra permanece incólume a rótulos. Se por um lado a referência sistemática a elementos da música popular brasileira automaticamente o desabilita como “vanguardista”, por outro o uso extremamente complexo e experimental que faz dessas referências nacionais, somado ao uso de técnicas essencialmente modernas, impede sua rotulação à tendência nacionalista e a movimentos derivados. “Existem compositores com o desejo e a vontade deliberada de parecer brasileiro e que para isso se apropriam de um padrão rítmico, de uma escala ou qualquer outro elemento, achando que assim garantem essa caracterização. Isso é uma estética falsa, uma atitude em si falsa, de criar algo que não faz parte de uma linguagem própria. É uma estética do querer ser. Eu não quero ser, eu sou!”, alfineta o compositor.
O impasse da cena musical brasileira o levou a completar sua formação musical na Argentina. Entre 1963 e 1964, mudou-se para Buenos Aires, onde teve intenso contato com o compositor Alberto Ginastera, a quem considera seu principal mentor. A partir de então, o músico passou a empreender uma série de viagens a Europa, onde, ao mesmo tempo que divulgava sua música, se aprimorava com mestres das mais diferentes vertentes, tais como Olivier Messiaen, Witold Lutoslawski, Henri Dutilleux, Luigi Dallapiccola e Riccardo Malipiero. Nos Estados Unidos, travou contato com a música eletroacústica sob orientação de Vladimir Ussachevsky, na Universidade de Columbia. No entanto, não teve interesse em desenvolver sua relação com esta estética musical. Marlos, aliás, não cultiva os modernos meios tecnológicos e, até hoje, escreve todas as partituras à mão, deixando a cargo de copistas o trabalho de processar suas obras nos softwares de editoração musical.
A década de 1960, além de representar o núcleo da formação estilística de compositor, foi uma época extremamente produtiva de sua carreira. Nada menos que trinta obras, nos mais diferentes gêneros e formações, foram compostas no período, incluso aí obras-chaves do repertório contemporâneo brasileiro, tais como Ukrinmakrinkrin, para voz, piano e instrumentos de sopro, a série de Desafios, que abrange diferentes formações instrumentais, Mosaico, para grande orquestra, e a música para a trilha sonora de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha.
O século XX mudou não apenas a música que ouvimos e a forma como a ouvimos. Ele mudou também a dinâmica social e econômica do meio musical, e poucas atividades foram tão drasticamente afetadas quanto à do compositor. Se por um lado a categoria manteve certo prestígio no meio artístico, por outro definitivamente deixou de ser uma “profissão”, ao menos em termos econômicos. Ao contrário do que viria a acontecer com a imensa maioria dos compositores (inclusive nos dias atuais), Marlos Nobre não seguiu carreira acadêmica, apesar de há muito tempo orientar jovens estudantes.
Ele partiu por outro caminho e iniciou uma carreira paralela na gestão pública. Assim, em 1972, novamente estabelecido no Brasil, assumiu a direção musical da Rádio MEC, que na época era responsável pela administração de diversos grupos musicais, inclusive da Orquestra Sinfônica Nacional (hoje integrada às atividades da Universidade Federal Fluminense, em Niterói). No ano seguinte, iniciou suas atividades junto à Unesco, primeiramente presidindo o Comitê Brasileiro de Música da instituição e mais tarde ocupando cargos no Conselho Internacional de Música e no Comitê Executivo Internacional de Música, numa relação que se estendeu até a década de 1980.
A proximidade com as estruturas do poder acabaram lhe rendendo olhares receosos de seus pares e, eventualmente, inevitáveis desavenças, como o famoso embate que, na década de 1980, quando trabalhava na Secretaria de Cultura do Distrito Federal, o opôs ao compositor Claudio Santoro, então diretor da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional.
Mas Marlos Nobre se defende: “Minha atividade sempre foi essencialmente musical”. E conta: “Quando trabalhei na Funarte, criei, entre outras coisas, o Projeto Espiral, destinado ao ensino de cordas aos filhos de operários. E o que ninguém sabe é que fui ‘requisitado’, diante de uma junta de três militares no Rio de Janeiro, para explicar as razões do projeto, considerado ‘estranho’. Tive que ouvir coisas do tipo ‘filho de operário não deve ser, naturalmente, operário?’. Passei por momentos meio complicados, mas fui liberado. Me deixaram em paz, mas sob vigilância, conforme fui discretamente informado”.
Atualmente aposentado da Rádio MEC, o compositor vive em um apartamento no bairro das Laranjeiras, com sua filha e sua esposa, a pianista e empresária Maria Luiza Corker, com quem encampa uma batalha em prol do direito autoral e da profissionalização do mercado para o compositor no Brasil. “O Brasil é muito provinciano em termos de música, em especial no que diz respeito à criação. Quando eu saí da perspectiva provinciana, comecei a sofrer as pressões locais deste provincianismo. Preocupa-me muito a função do compositor em nossa sociedade, pois aqui a política cultural é perversa. Algumas orquestras brasileiras recebem subvenções monstruosas e, no entanto, não têm nenhum compromisso consistente de encomendas de obras para compositores brasileiros”, analisa Nobre, que já em seu primeiro ano à frente da Sinfônica do Recife realizou a audição e a estreia de várias obras orquestrais de jovens compositores.
Passado mais de meio século desde que deixou o Recife para se estabelecer no Rio de Janeiro, no retorno a sua terra natal Marlos Nobre constatou que quase nada da precariedade e do provincianismo que então caracterizavam a cena musical local havia mudado.
“Quando, no ano passado, assumi a dianteira da Sinfônica do Recife foi uma experiência estranhíssima. A orquestra estava sem motivação alguma e totalmente desestruturada. Para se ter uma ideia, só havia quatro violinistas contratados, os músicos ganhavam pouco mais de mil reais, que não raro eram pagos atrasados”, relata o compositor, que desde sua chegada conseguiu um aumento nos vencimentos dos músicos, por meio de gratificações, bem como a contratação de novos e jovens instrumentistas. Neste campo, a nova batalha do compositor está apenas começando, pois, institucionalmente, na estrutura da prefeitura do Recife, a orquestra não existe e, fora a ainda escassa verba para o pagamento de pessoal, o grupo não possui estrutura nem financiamento adequados para necessidades básicas de qualquer orquestra, tais como pessoal de produção executiva, comunicação e divulgação, copistas e arquivistas.
“Na prática, vou ter que criar uma orquestra do zero”, analisa de forma realista Marlos Nobre, que além de tomar a dianteira da estruturação administrativa da Sinfônica do Recife também assumiu o comando artístico da instituição, valendo-se para isso não apenas de sua natural musicalidade como compositor e pianista, mas também de uma respeitável experiência como regente que já esteve à frente de orquestras como a Royal Philharmonic de Londres, a Orchestre de la Suisse Romande e a Orchestre National de la Radiodiffusion Française, entre outras.
O desafio que Marlos Nobre tem pela frente é grande, ainda mais se tivermos em mente os projetos artísticos que ele mantém para o futuro próximo, que, além de sua atividade primeira de compositor, ainda incluem a gravação de seu Concerto para orquestra pela Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, da Venezuela, sob regência de Gustavo Dudamel.
Mesmo aos 75 anos, nada parece cansar este artista de música e opinião fortes. Marlos Nobre continua a mil!
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