Acervo CONCERTO: A vida de Hector Berlioz

Texto de João Luiz Sampaio na Revista CONCERTO de maio de 2015

Na rue des Moulins, que corta de um lado a outro a pequena La Côte Saint-André, no sul da França, ainda é possível encontrar a imponente casa que um dia pertenceu ao médico Louis Berlioz. Após subir os degraus da escadaria central, basta seguir à direita para chegar ao quarto que, na infância e na adolescência, foi ocupado por seu filho mais velho, Hector. Ali, a pequena janela se abre em direção a uma enorme planície, “rica, dourada, verdejante, cujo silêncio tem não sei o que de sonhadora majestade, aumentada pelo cinturão de montanhas por trás do qual erguem-se, ao longe, carregados de geleiras, os picos gigantescos dos Alpes”. Foi assim que Hector, anos mais tarde, se lembraria, ao escrever suas Memórias, do local onde descobriu que sua vida seria definida por “uma longa e ardente busca de um ideal”. Busca que fez dele um dos símbolos do artista (herói?) romântico, autor de obras que ainda hoje reivindicam para si protagonismo no cenário da música do século XIX.

O interesse de Hector Berlioz pela música e pela literatura (aos 12 anos, já traduzia do latim textos de Virgilio) foi despertado ainda em casa. Seu primeiro instrumento foi o flageolet, logo substituído por uma flauta. A certa altura, ele chegou a ter aulas com um músico de Lyon. E, desde o início, tocar significava também criar – suas primeiras peças datam ainda da adolescência, em especial Je vais donc quitter pour jamais, dedicada a sua primeira paixão, a jovem Estelle. A partitura foi destruída pelo compositor; mas a melodia se transformaria, anos mais tarde, no tema principal do primeiro movimento da Sinfonia fantástica.

O dr. Berlioz estimulava a relação do filho com a arte, mas não gostou quando Hector começou a pensar em fazer dela sua profissão. Isso aconteceu em Paris, para onde se mudou em 1821. Seu objetivo inicial era estudar medicina, mas o contato com a cena artística provocou nele uma transformação: ali, ouviu pela primeira vez obras de Gluck, Salieri, Spontini, Beethoven; leu livros como Fausto, de Goethe; e conheceu as peças de Shakespeare (encenadas por uma companhia da qual fazia parte a atriz Harriet Smithson, por quem acabou se apaixonando). Sua primeira ida à Ópera de Paris, ele conta, o deixou em tal estado de excitação que ele passou duas noites sem dormir. “E eu jurei a mim mesmo que, apesar de meu pai, minha mãe, meus tios, tias, avós, amigos, eu seria músico.” Pouco depois, ele escreveu ao pai uma carta em que dizia ter encontrado apenas uma maneira de “saciar completamente esse meu imenso apetite pela emoção: a música”. “Sem ela, tenho a certeza de que não conseguiria viver.” A declaração não sensibilizou o pai. Mas, ao longo da década de 1820, Berlioz, mesmo provocando desentendimentos com a família, levou adiante seu novo plano. Entrou para o Conservatório, escreveu a Misse solemnelle, as Oito cenas de Fausto e começou a reger.

Sua primeira grande obra, a Sinfonia fantástica, nasceu em 1830. A paixão não correspondida por Harriet Smithson gerou nele uma montanha-russa de sensações, as quais ele se dispôs a narrar na obra, construída em torno de um motivo central recorrente, uma “ideia fixa” a unificar a peça que, programática, descrevia, a cada movimento, a trajetória desse “jovem músico de grande sensibilidade e cheio de emoção, desesperado por causa de um amor não retribuído”. A recepção à sinfonia foi controversa, mas teve defensores importantes, como Franz Liszt. Dois anos mais tarde, ao partir para a Itália (ele vencera, com a obra Sardanapale, o Prêmio de Roma), Berlioz já gozava de certo reconhecimento no cenário musical parisiense, inclusive com a realização de um concerto ao qual compareceram personalidade como Victor Hugo, Heinrich Heine, Paganini e Chopin. Para isso, colaborava também sua atuação como crítico musical, que lhe deu visibilidade e, durante décadas, foi sua principal fonte de renda e sustento.

Na Itália, ele recebeu a notícia de que sua noiva Camille Moke o havia abandonado para se casar com Camille Pleyel. Decidiu voltar para Paris para matar os dois e a si mesmo, mas, no meio da viagem, se acalmou e abandonou os planos. A relação com Harriet Smithson, no entanto, deu certo, e os dois se casam em 1833, na Inglaterra. Sob encomenda de Paganini, ele escreveu Haroldo na Itália, mistura de sinfonia e concerto característica de um autor, que ao longo de toda a carreira, bagunçou as linhas que separam os gêneros. Nos anos seguintes, escreveria ainda a ópera Benvenutto Cellini e a Grande missa dos mortos, além de Romeu e Julieta, também encomendada por Paganini, cuja estreia foi assistida por Wagner.

Em 1841, Berlioz começou a escrever os 16 artigos que, mais tarde, dariam origem ao Tratado de orquestração, tido ainda hoje como referência importante. Um ano depois, fez a primeira grande turnê pela Alemanha. A volta a Paris, no entanto, foi problemática. De um lado, sua vida pessoal passava por alguns abalos: o problema de Harriet com álcool afastou o casal e, eventualmente, os dois se separaram; Berlioz acabou se casando com a amante, a atriz Marie Recio, numa união desaprovada por sua família. Ao mesmo tempo, a inabilidade política do compositor lhe rendeu grandes inimigos e tornou difícil a penetração no establishment musical parisiense. Sua nova ópera, A danação de Fausto, estreada em 1846, foi um enorme fracasso, como já havia acontecido com Benvenutto Cellini. E, endividado, Berlioz resolveu aceitar o convite para mais uma turnê internacional, partindo em direção à Rússia. Ainda assim, ele diz à irmã, Nancy, em uma carta de 1849, não ter arrependimentos: “A arte é a única coisa nesse mundo que perdura e que lamentamos perder. Para sentirmos seu poder e adorarmos sua beleza, vale a pena até nos submetermos à armadilha chamada vida.”

Nos anos seguintes, apesar de conseguir o cargo de bibliotecário do Conservatório de Paris, Berlioz fez diversas viagens e dedicou-se à composição de peças como as óperas Béatrice et Bénédict e Les troyens e o Te Deum. No início dos anos 1860, porém, dois grandes golpes o abalaram: a morte de sua irmã e confidente Adèle e de Marie Recio. Em 1863, Les troyens fracassou e foi cancelada após duas récitas no Theatre Lyrique, em Paris (a obra só voltaria a ser encenada na França 140 anos mais tarde, em 2003). Cansado e acometido por problemas no intestino que lhe incomodaram durante boa parte da vida, Berlioz diminuiu gradualmente suas viagens. A morte do filho, em 1867, agravou seu estado. Ele partiu, ainda assim, para a Rússia. Seria sua última turnê – em 8 de março de 1869, de volta a Paris, ele morreu em casa. Poucos dias antes, teria dito ao amigo Ernest Reyer: “Finalmente tocarão a minha música”.

Ao definir sua criação, Berlioz escreveu que suas qualidades dominantes eram “a expressão apaixonada, o ardor interior, a ousadia rítmica e o imprevisível”. Após algumas décadas de esquecimento, em especial dentro da França, essas características voltaram a ser reconhecidas por novas gerações de músicos de todo o mundo a partir do início do século XX. Foi então que deu-se a ele o reconhecimento por uma obra que, símbolo do movimento romântico, soube expandir seus limites, influenciando outros autores, como Wagner, Gounod ou Debussy. Além disso, seu trabalho como crítico oferece um olhar privilegiado sobre o meio musical do século XIX. Da mesma forma, suas Memórias, escritas ao longo de toda a vida, seguem como testemunho do ambiente artístico e literário de sua época e, mais que isso, são um excelente tratado sobre aquilo que define a condição do artista.

Linha do tempo

1803
O compositor nasce no dia 11 de dezembro, em La Côte Saint-André

1815
Conhece Estelle Duboeuf, sua primeira paixão, para quem escreveria uma de suas primeiras peças, Je vais donc quitter pour jamais

1821
Muda-se para Paris, onde vai estudar Medicina

1824
Escreve a Messe Solennelle; abandona definitivamente a medicina para se dedicar à música

1827
Conhece a atriz Harriet Smithson, por quem se apaixona

1828
Realiza seu primeiro concerto sinfônico

1830
Compõe a Sinfonia fantástica; começa o relacionamento com Camille Moke; sua cantata Sardanapale vence o Prêmio de Roma; conhece Liszt

1832
De volta da Itália, realiza concerto a que compareceram Victor Hugo, Paganini, Chopin e Heinrich Heine e Harriet Smithson; os dois se casam no ano seguinte

1834
Começa a escrever críticas para o Journal des Débats; estreia Haroldo na Itália

1839
Após receber encomenda de Paganini, escreve Romeu e Julieta

1841
Começa a escrever seu Tratado de orquestração, que será publicado em 1844

1842
Realiza a primeira grande turnê pela Alemanha

1846
Nova turnê europeia; estreia de A danação de Fausto é um fracasso

1863
Les Troyens estreia no Théâtre-Lyrique, mas é um fracasso de crítica e público

1869
Morre no dia 8 de março, em Paris